terça-feira, 12 de julho de 2011

A Máquina Rizomática: um conto de desrazão

A escrita de minha tese doutoral [“Corpos movediços, vivências libertárias: a criação de confetos sociopoéticos acerca da autogestão”] gerou, por deriva, alguns textos adicionais… Gostaria de tornar pública uma parcela deste material, porque, no final das contas, as teses terminam engavetadas e nem tudo escrito nelas se converte em artigos e livros... Por este motivo, publico no blog este conto breve:



A Máquina Rizomática: um conto de desrazão


- As máquinas estão em toda parte…
- O quê?!
- Deleuze…
- O que tem Deleuze?
- Ele disse que as máquinas estão em toda parte… conectadas e conectando… em fluxos e…
- Tá, tá. Beleza… Passa a seda aí.
- Vou te dar xeque-mate.
- É?!… mas não agora…
- …não agora…
- Aumenta o som aí, essa música do Lou Reed é foda, me’rmão ! Me diz uma coisa… como foi esse lance do coletivo que vocês criaram?
- Outro dia eu conto, por enquanto as coisas são ainda muito fortes para mim…
- …

*

Tudo começou num setembro. A gente ouvia Lou Reed na vitrola. Transformer. Ou Berlin. Não sei bem. Misturávamos tudo. E ainda havia Iggy Pop: The Idiot. Terminava o lado ‘b’ de um vinil, colocávamos o lado ‘a’ de outro. Aquelas canções impregnaram-se nas paredes do apartamento.
No apartamento havia cada vez mais pessoas circulando. A cada semana, novos amigos. Uns lavavam os pratos do almoço do dia anterior. Uns preparavam o almoço do dia. Uns dormiam no chão da sala ou sob os sofás. Xadrez, vinil, livros libertários, vida libertina. Comida vegana. Praias, festas, trilhas nas dunas, tática yomango nos supermercados de madrugada. Rolés de bike. Amor-livre. Rock’n Roll. Você sabe, essas coisinhas que não aprendemos na escola.
Colávamos tudo nas paredes. Um cartaz de uma banda de hardcore: ‘pelo fim da família nuclear’. Fotos 3x4. Reportagens de jornais: ‘grupo anarquista polemiza na parada gay de Fortaleza’, ‘automóveis 4x4 incendiados por vândalos anônimos’, ‘piscinas de condomínios fechados são tingidas de negro’, ‘construção da ponte da Sabiaguaba: caminhões são sabotados’. Panfletos: ‘festa do voto nulo’, ‘curso de ação direta não-violenta’, ‘vivência autônoma sem Estado’. Ingressos de cinema: Clube da Luta, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, El Día de la Bestia. Frases riscadas nas paredes: ‘a vida sem açúcar é mais doce’, ‘como seria viver a vida que você sempre desejou?’, ‘a imaginação tomou o poder’, ‘você não é o seu pai’, ‘aquilo que você possui acaba possuindo você’, ‘go vegan for life’… Logo as paredes estavam cheias, logo não se via mais a tinta das paredes.

*

Não se sabe quando aconteceu, mas éramos já um coletivo. Libertário. Vegano. Clandestino. Insurgente. Rizoma, Coletivo Rizoma. Ninguém sabe como aconteceu.

*

No Coletivo Rizoma, cada um colabora com suas experiências e seus desejos. No Rizoma, cada coração é uma célula insurgente. No Rizoma, cada membro é um rizoma conectado a outros rizomas. Não há reuniões do coletivo. Vivenciamos. Cada membro do Rizoma existencia seu devir-libertário, seu devir-autogestionário, à sua forma, à sua maneira. O Coletivo Rizoma é um fluxo incessante de devires. Devir-animal, devir-planta, devir-guerrilheiro, devir-orixá, devir-criança, devir-inhame…
O devir-libertário realça as singularidades de cada membro. Cada um vive seu devir-autogestionário. O coletivo não é monolítico, não é uma unidade, não é homogêneo; não deseja o uno e nem o perene, mas o múltiplo e o transitório; não deseja o poder, antes prefere a potência; não o universal, mas o situado. Os devires-autogestionários apontam em todas as direções, são polissêmicos e distintos dos conceitos estabelecidos do que é e do que não é autogestão.
Os devires-autogestionários circulantes no Coletivo Rizoma:
Muitos, dentro do coletivo, vivenciam a Autogestão Fuga. A fuga não como desaparecimento, não como retirada, mas criação. Nas vivências autogestionárias aflora a potência de fuga das culturas repressivas, linhas de fuga de todo fascismo criando o novo, o outro diferente.
Lola e Catarro pegaram a estrada de bike e mochila, saíram sem planos, num rolé-monstro; eles partiram sem rumo numa aventura amorosa e subversiva. É o espírito do coletivo nos corpos deles. Experimentaram seus devires-autogestionários como uma viagem sem destino traçado, ao sabor do acaso, dos fatos, dos eventos… Autogestão Sair Sem Rumo, cartografando territórios desconhecidos, desafiando-se continuamente, um tipo de autogestão sem direcionamentos pré-determinados e aberta a outras possibilidades.
Emma acredita em sua jornada de autoconhecimento, freqüenta templos Hare Krishna e terreiros de Candomblé, ela mescla isso com sua vivência libertária. Ela traz isso pras práticas do coletivo. Autogerir-se implica em autoconhecimento. A autogestão demanda o conhecimento de si, conhecer-se para governar-se. O devir de Emma é a Autogestão Autoconhecimento.
Quando T… entrou no coletivo, tod@s perguntaram se ele suportaria uma vida libertária em contínua desterritorialização, se ele não evocaria suas tradições, por que nas atividades que pediam nudez (banho de lagoa, trilha nas dunas durante a lua cheia, em nosso particular ‘dia sem roupa’ ou mesmo no banheiro coletivo), T… simplesmente não suportava o nu de seu corpo, o nu dos seus sentimentos, o nu de seus desejos, o nu da sua vida. É preciso estar nu das culturas de repressão para encarar os momentos autogestionários e encher de cor a vida. Castigar a nudez leva a um abismo maior que é viver sem se conhecer… A Autogestão Nudez Castigada inviabiliza o desconhecido, o outro-absolutamente-diferente, o desterritorializar-se, pela vergonha e pelas tradições…
Zii trata nossas vivências libertárias como um delicioso fruto raro, simplesmente saboreia cada instante, cada situação, cada acontecimento como quem vive o extraordinário de sua vida… Zii não quer o ‘depois’ da autogestão, mas o seu ‘agora’ – a autogestão não é um fim, idealizado no alto de um monte inatingível, ela se dispõe ao longo do trajeto libertário. Quando cuidávamos da horta coletiva, Zii se entregava completamente à atividade – experimentando os sabores raros dessa vivência autogestionária. Zii e sua Autogestão Fruto Raro.
Jão mora num squatt anarco-punk próximo do nosso apartamento; vive de forma autônoma, sem trabalho, sem escola, sem família. Manguea nos cruzamentos das avenidas, fazendo malabares… se desloca de bicicleta pela cidade. Está sempre procurando formas underground de viver, de se agregar em matilha com outros libertários; ao mesmo tempo, ele vislumbra, com sua percepção de águia, olhando do alto, um novo ordenamento humano… Autogestão Lobofalcão, uma matilha de libertários experimentando o underland, mas sem perder a perspectiva dos propósitos elevados do Anarquismo. Para ele a vida libertária implica em caos, em desejo pelo caos – o caos primordial que gerou tudo que existe no universo. Esse caos coabita a anarquia, funda a anarquia… e destrói a ordem social capitalística, instaurando novos e difusos ordenamentos sociais não centralizadores, uma Autogestão Caosordem
Ju, menina linda e delicada. A mais nova entre os membros do Coletivo Rizoma. A mais desejada entre todas as meninas libertárias. Acredita na desobediência como ação política. A Ju é nossa Thoreau: age sem pedir licença, vai contra a via, canta contra a melodia, nada contra a maré. Personalidade forte, sua força vital contagia tod@s @s rizomátic@s. A desobediência como potência para viver com energia e coragem – tal é a Autogestão Desobediência. Desobedecer à ordem estabelecida, aos padrões codificados da sociedade, produzir fissuras nas modelizações capitalistas. A autogestão é essa desobediência potencializadora da criação de outras formas de sociabilidade.
Lucas é músico de uma banda hardcore – toca guitarra e é vocalista. Sua música fala sobre libertação animal, sobre os vários fronts de luta contra a ordem capitalística. Sobre a libertação do planeta Terra. Ele constrói um campo de resistência forte às coisificações da sociedade de consumo. Sua arte, ele a oferece à causa libertária. As músicas da banda contagiam as pessoas, mas ele mesmo não acha as canções suficientes aos seus propósitos. A Autogestão Oferenda pede um sacrifício maior à causa libertária, mas essa oferenda deve ser ofertada, à custa de suor e empenho, com amorosidade.
O Snake é hoje um dos mais simpáticos membros do coletivo, o ‘gente fina’ da galera; mas no começo, quando ele entrou sorrateiramente no nosso cotidiano, desconfiávamos de suas intenções – nosso coletivo desenvolve ações clandestinas ilegais, é preciso cautela. Ele chegou oferecendo ajuda. Desconfiamos no início, mas logo entendemos que sua companhia era indispensável. A autogestão gera desconfianças em muitas pessoas e grupos, pois sua aparência não é nada convidativa: ela rasteja e silva e contorce o corpo e troca de pele… Os estereótipos sociais a põe na esfera da desconfiança. Entretanto, a Autogestão Cobra aponta para novos caminhos, e, desde que não estejamos contaminados por preconceitos, logo perceberemos que ela é uma excelente companhia e aconselhadora.
Saú, flecha de Xangô. No coletivo, quer ser a voz mais forte. Não consegue esconder sua gana pela liderança do grupo – teve inúmeras vezes sonhos com momentos de comando. No seu corpo habita um devir-heterogestor violento. Vive uma autogestão paradoxal, pois a toma como poder de posse sobre a natureza, como exercício de dominação sobre os elementos da vida; uma autogestão que verticaliza as relações e põe objetivos no alto do céu… deposita lá seus tesouros. Autogestão Alto do Céu visa a gana; não a potencialização da pessoa, mas o empoderamento do indivíduo.
Woody, Eduardo quer ser chamado de Woody. Como Woody Guthrie, lendário músico de Folk que empunhava sua guitarra onde havia escrito: Esta máquina mata fascistas. Nosso Woody possui uma mente inquietante, e contagia a tod@s com sua alegria transgressora, suas frases desestabilizadoras: “Sou uma máquina desejante inconformada, minha existência transcende os desejos codificados pelo capital… só sei ser sendo outros, matando meu eu atomizado… multiplicidades e singularidades!”; “Sou um caçador de subjetividades! Me encontro na diversidade, transito por territórios distintos e me conecto com fantásticas pessoas… meu coração já não mais me comporta!”; Uma Autogestão Caçador de Subjetividades.

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Nos tornamos ativistas pela libertação da Terra. Ecoterroristas. Vivíamos numa comunidade utópica, elaborando planos conspiratórios contra a ordem capitalista-tecnológica. Sabotagens e destruição em massa. Gerar danos à propriedade como ato político. As pessoas gostavam de pensar que nós estávamos envolvidos nas sabotagens no canteiro de obras da represa hidrelétrica de Belo Monte; se parques eólicos sofriam ataques, se mansões construídas em áreas de preservação amanheciam incendiadas ou se um comboio de carros-cegonha transportando automóveis off-road virava cinzas, as pessoas gostavam de pensar que nós estávamos envolvidos com isso… Laboratórios de vivissecção destruídos. Logo outros grupos anônimos começaram a atuar. As coisas se espalharam vertiginosamente… células rizomáticas ramificando-se aleatoriamente, sem centro decisório… ação política tipo flash mob. Tudo fugiu ao controle. Nada nunca teve controle mesmo.

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- Tudo que vocês fizeram foi muito forte para muitas pessoas…
- Ah, qual é… isso é apenas uma história… Aliás, xeque-mate.

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