quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Educação & Sociedade - What is searching? between Deleuze-Guattari and Candomblé, thinking about myth, science, art and cultures of resistance

Educação & Sociedade - What is searching? between Deleuze-Guattari and Candomblé, thinking about myth, science, art and cultures of resistance


O que é pesquisar – Entre Deleuze-Guattari e o candomblé, pensando mito, ciência, arte eculturas de resistência

Jacques Gauthier*

RESUMO: A ciência atual é uma ciência do evento e do acontecimento. Explorando, após Deleuze, a diferença entreevento e acontecimento na filosofia estóica, o autor caracteriza vários modos de "fazer ciência": a dupla captura, referida, numa visão transcultural, à divindade Ogum do candomblé; a maturação escura, referida à divindade Ossãe etc. Daí são discutidos, com base em Spinoza, a questão do local e do universal na construção do conhecimento, e com base em Michel Serres, o problema da articulação entre mito e ciência. A pesquisa de Graziela Rodrigues, "Bailarino-pesquisador-intérprete: Processo de formação", é tomada como exemplo de abordagem inovadora, transcultural e sociopoética. Uma pergunta conclui este artigo: será que a descolonização dos espíritos (e dos corpos) passa pela criação de uma episteme transcultural?

Palavras-chave: Teoria da pesquisa, sociopoética, transculturalidade, mito, ciência

Algumas duplas capturas

Ao refletir sobre a ciência atual, Gilles Deleuze, numa obra que pode ser considerada como uma explicação (ex-plicação, desdobramento) dos grandes conceitos criados em parceria com Félix Guattari: Diálogos (Deleuze e Parnet 1996), aponta que a física, a matemática, a biologia e as ciências sociais trabalham cada vez mais sobre "estados de corpos", sobre "agenciamentos heterogêneos", sobre "inter-reinos" (animal, vegetal, mineral). O exemplo que Deleuze gosta de tomar é o da abelha e da orquídea, agenciamento de corpos que cria uma máquina única, através de uma dupla captura, do bicho pela flor e da flor pelo bicho. O modelo de cientificidade não é mais a axiomática nem a estrutura (na busca de formas que tornem homogêneos e homólogos os elementos variáveis), mas sim o acontecimento ou evento, singular, incorporal, que tem sua efetuação em corpos ou estados de corpos: "Não tira-se mais uma estrutura comum de elementos quaisquer, espalha-se um evento, contra-efetua-se um acontecimento que corta diferentes corpos e efetua-se em diversas estruturas" (Deleuze e Parnet 1996, p. 82).

Pesquisar é criar devires, exprimir o virtual incluído em uma situação, lançar multiplicidades que não podem ser presas nas grandes máquinas estatais, geralmente binárias (tais como homem-mulher, branco-negro, adulto-criança etc.). Nas ciências humanas e da sociedade desenvolvem-se pesquisas estudando o singular, tais como as pesquisas etnometodológicas e interacionistas, socioanalíticas e sociopoéticas, etnocenológicas e ritualísticas. Uma área do conhecimento é criada, aos poucos, na qual são teorizados os dados produzidos pelos grupos-sujeitos das pesquisas, sendo estes dados criaçõessingulares, quase artísticas, inesperadas e imprevisíveis, dos sujeitos pesquisados. Muitas vezes, os pesquisados tornam-se pesquisadores ao participar da leitura, da análise, da experimentação e da teorização dos dados que produziram.

É interessante, aí, lembrar que o grande teórico da singularidade, Spinoza (e seria bom ler Leibniz também com esta preocupação), pensava o objeto de conhecimento segundo dois eixos: a integração na unidade do ser e a disseminação. A integração foi glorificada pelas narrativas racionalistas e estruturalistas, pois ela relaciona a complexidade caótica do que ocorre com a substância universal, Deus, isto é, a Natureza. Os cientistas encontravam, nessa leitura homogeneizante, as suas próprias preocupações em submeter a variedade à lei geral, as variações ao tema, a flexão ao radical. Por manter o caráter irredutível da diferença na singularidade, o segundo eixo foi desprezado: poucos cientistas reconheciam seu fazer científico na filosofia da diferença. Só a partir dos desenvolvimentos científicos do século XX tornou-se possível uma leitura que começasse pela descrição das dimensões da singularidade, e seguisse, passo a passo, seu devir imprevisível pela razão humana – nem sempre "suficiente"! Um exemplo é a Teoria das Catástrofes do matemático René Thom (1977), bem como a Transformação do Padeiro e as Teorias do Caos (ver Prigogine e Stengers 1988). Ao pensar numa vertente bem diferente do pensamento, não é por acaso que se reavalia hoje o empirismo, tão desprezado pela tradição racionalista: os empiristas exercitam sua consciência crítica sobre as teorias, consideradas como narrativas, cujo sentido se encontra, também, nas encruzilhadas entre o imaginário humano e os objetos sensíveis. O racionalismo clássico não foi suficientemente atento à dimensão imaginária da experiência e da prática científica, nem à singularidade dos objetos que ele pretendia transformar em objetos de conhecimento. As singularidades nos obrigam, por causa dos seus devires nunca contemplados nos discursos instituídos, a ser atentos à poiesis da natureza e da vida social, a seu poder de autocriação e às implicações do nosso olhar chamado de científico, nesse processo de criação.

Por exemplo, criar um devir, na linguagem, é criar um estilo singular, falar a sua própria língua como um estrangeiro. Essa produção realiza-se, segundo Deleuze e Guattari (1980), por uma máquina de guerra nômade, totalmente diferente dos exércitos estatais. A máquina de guerra procede por duplas capturas. Na área da educação, sem a captura recíproca dos procedimentos acadêmicos de pesquisa e de práticas e conhecimentos de pais, alunos, comunidades, nenhum conhecimento novo pode acontecer. A captura não é pacífica. Não é uma síntese. É a criação, difícil, de "outra coisa", onde estão conectados corpos, idéias, energias habitualmente soltas. É a criação de novas intensidades, que geram novos conceitos. Esse processo é chamado de "desterritorialização". No exemplo tomado são desterritorializados tanto a pesquisa acadêmica (o "saber" em educação) como os pais, os alunos e as comunidades. Isto é o que Deleuze e Guattari (op. cit., p. 34) chamam fazer rizoma:

Existem linhas que não podem ser resumidas em trajetórias de um ponto e que fogem da estrutura, linhas de fuga, devires, sem futuro nem passado, sem memória, que resistem à máquina binária, devir-mulher que nem é homem nem é mulher, devir-animal que nem é bicho nem homem. Evoluções não paralelas, que não procedem por diferenciações, mas que pulam de uma linha para outra, entre seres totalmente heterogêneos; fissuras, rupturas imperceptíveis, que quebram as linhas, mesmo se retomam em outro lugar, pulando por cima dos cortes significantes… é tudo isso o rizoma.

Para tomar um outro exemplo, bem conhecido: a etnometodologia teve um dos seus inícios no encontro entre o pesquisador Garfinkel e Agnes, pessoa que queria mudar de sexo anatômico. Do encontro entre os dois nasceram linhas de fuga altamente criadoras em termos de conhecimento. A dupla captura Agnes-Garfinkel produziu um saber instituinte sobre os métodos utilizados pelos médicos, pelo pessoal de enfermagem, pela comunidade acadêmica, pelas famílias… por vários territórios – inclusive o corpo de Agnes, que escolheu consertar o erro da natureza que colocou para ela, mulher, um órgão viril – para dar uma existência social e significação ao gênero.1

A máquina de guerra nômade cria uma nova circulação de afetos, expõe o virtual presente no atual, gera saberes inesperados. A dificuldade é que esses saberes passam como fluxos, não são identificáveis segundo os hábitos acadêmicos de pensamento. Eles não têm uma identidade. Não se trata, aí, da produção de uma nova identidade, muito pelo contrário. São criadas novas intensidades, sim, às vezes evanescentes (como os quarks na física atômica), às vezes duráveis. Uma conseqüência muito importante é que a pesquisa em ciências humanas e sociais desenhará mapas de intensidades, e de jeito nenhum, mapas, carteiras de identidades.

O acontecimento, o evento e alguns orixás

Em coerência com Deleuze e Guattari vou experimentar a seguinte máquina de dupla captura: de um lado, a própria intensidade Deleuze-Guattari, intensidade múltipla, sobretudo, não dual. De outro lado, o candomblé, agenciamento complexo de corpos e discursos. No centro, ou melhor, em todos os lugares, o conceito filosófico expresso por Deleuze e Guattari através da palavra francesa évènement. Ora, a língua portuguesa tem duas palavras quando a francesa tem somente uma: "evento" e "acontecimento". Reflitamos sobre a diferença entre "evento" e "acontecimento": Acontecimento vem de "acontecer", do que está tecido junto. Evento vem do que "e-veio", do que está indo para fora; do que está surgindo, como o vento.

Em referência à filosofia estóica, apesar da dificuldade da língua francesa que ignora essas diferenças, Gilles Deleuze (1969) caminhou rumo a uma compreensão da polissemia da palavra évènement. O estoicismo coloca do lado do acontecimento o que exprime, aqui e agora, a necessidade universal, o destino. O acontecimento é sempre necessário (daí, lamentar-se e esperar não têm nenhum sentido); ele é sempre singular, diferente de um acontecimento outro ("comer" não é "nadar" nem "falar"); ele é sempre complexo ("comer" aqui e agora não é comer amanhã, ontem ou em outro lugar: o gosto é diferente, a luz, o ambiente, os outros…). O atual, o estado ou fazer atual, é o ponto para onde convergem todas as características necessárias da situação: eu estou comendo tal comida em tal companhia e tal ambiente…

O evento é o incorporal que intensifica e contra-efetua o acontecimento. Podemos exprimi-lo assim: "o comer". O evento é o infinitivo. Existe, aqui e agora, "o comer". Você veio até esta comida, pouco importa se foi de ônibus, a pé, voando, você veio: "o vir". Destaca-se uma linha abstrata, "o vir", "o comer", "o falar", "o nadar", "o cair", "o estar". Nunca o Ser, nunca o Eu. Nem maiúsculos, nem substâncias, nem sujeitos. Processos, estados, devires. O evento liga diretamente o atual com o virtual. Você passou por um "vir"? Você está atravessado por um "comer". Aí existe um "falar" virtual, ou um "cair" da sua cadeira, ou um "sambar". O evento abre para uma multiplicidade de devires outros. É só falar.

O desejo vai e vem entre evento e acontecimento. É só isso, o desejo. Desculpe, uma intuição passou.

Ao ler Deleuze e Guattari surgiu a imagem de Dionísio. O evento Deleuze-Guattari, a filosofia do desmembramento. Mas esquecemos que Dionísio significa: "Aquele que nasceu duas vezes". Sim, depois do seu desmembramento, seu coração foi comido por Perséfone, filha de Deméter (a Deusa-terra) e esposa de Hades (o Deus dos Infernos), aquela moça bonita e misteriosa que passa seis meses com a mãe, no verão, e seis meses com o marido, no inverno nosso. E Dionísio nasceu uma segunda vez, de Perséfone. Daí surgiu uma idéia: falta à filosofia francesa contemporânea a figura feminina da fecundidade da escuridão, do lento trabalho de maturação, do segredo da lama em que começaram as coisas, figura mítica que o candomblé conhece sob o nome de Nanã Buruku.2

Relendo Deleuze e Guattari pareceu-me relevante a captura dessa intensidade pelo candomblé. Na terra baiana que escolhi como território, na nação Angola que foi escolhida através de mim, os orixás do candomblé são miticamente mais relevantes para pensar que os deuses da antigüidade grega. Assumindo essa dupla escolha, aponto que o desmembramento é um efeito da singularidade-Exu,3 assim como as ligações novas, instituintes.

Gilles Deleuze, provavelmente, era filho de Ogum, orixá guerreiro, patrono do ferro e da tecnologia ("tem a função de assiwaju, aquele que toma a frente" – acrescentam Sodré e Lima 1996). Oxóssi, irmão dos dois precedentes (ou filho de Ogum em algumas versões), orixá caçador, habitante das matas, patrono da nação nagô-kêtu, rege igualmente a intensidade-Deleuze. Exu, Ogum e Oxóssi estão mais do lado do acontecimento. Pelo menos a guerra e a caça exigem decisões rápidas, preparações atentas, conhecimentos finos de como as coisas são tecidas entre elas, intuições das necessidades vivenciadas pelo inimigo ou pela presa.

Félix Guattari parece ser filho de Oiá, orixá ligada aos raios e tempestades, à água e à floresta.4 Mais praticante de guerrilhas que de guerras, por ser apaixonada, caracterizada por deslocamentos bruscos. Oiá está do lado do evento, pelo afeto que puxa um fio e corre, e queima: ela é a superfície do vento no evento. Félix de Oiá, dos devires imprevisíveis, das virtualidades assumidas desde que anunciadas, da velocidade quase absoluta no pensamento.

E nas importantes colocações de Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, sobre o devir-bruxo, sobre as ligações por conexão entre elementos heterogêneos, aparece a intensidade-Ossãe, orixá patrono de toda a vegetação, das folhas e seus derivados mágicos e medicinais. Oiá, Ossãe e uma parte de Exu estão mais do lado do evento. O que em Exu é o "estilo", a geração do que é totalmente individual, singular. O terço incluído em todo evento, a relação que sempre pode ser prolongada em várias direções. No indivíduo singular, o estilo aparece como uma vibração do ar quando anda, uma diferença sutil no ambiente quando está presente, mesmo calado e invisível. Evento-Exu, que os cristãos assimilaram ao Diabo!!!

Reparemos que se trata bem de uma dupla-captura: não estamos propondo apenas uma experimentação (não uma interpretação – "Sobretudo não interpretem mas experimentem!", disse Deleuze) da filosofia de Deleuze-Guattari pelo candomblé; experimentamos, também, o candomblé por meio da máquina elementar acontecimento/evento, colocando Ogum e Oxóssi de um lado, Oiá e Ossãe de outro, Exu entre os dois.

Em Ossãe, todavia, quero dizer, no devir-bruxo, os nossos filósofos viram só a bruxaria, mas sabe-se, no candomblé, que se deve cuidar do mistério nos devires, proposta inconciliável com o projeto da ciência ocidental. Uma preparação invisível é necessária para que nasçam intensidades novas. Esta outra concepção da ciência, diferente, não foi "vista" por Deleuze e Guattari nos seus livros. Oxóssi não a revelou. Nesta, o segredo, a química que permite obter os sumos potentes, a paciência, a imaginação atenta, o uso cauteloso do tempo são necessários. As máquinas de guerra não servem de nada. A máquina-maga ("maga", mulher do mago, como diria uma criança), na ciência, não somente conecta elementos heterogêneos, como nossos filósofos apontaram; ela é uma qualidade de uso do tempo. A ciência-Ossãe é uma "ciência sensível", como dizem as pesquisadoras em enfermagem que tomaram por modelo epistemológico o cuidar na sua verdade prática. Conhecendo pelos seus sentidos, sua emoção, sua intuição e sua razão, a pesquisadora afirma o seu direito de conhecer com todo seu corpo, inclusive nos territórios da ciência "nobre". O evento, aí, é um "concreto", no sentido dos perfumadores, isto é, o produto de base, o concentrado oriundo das flores: o mais evanescente e o mais sensível e sensitivo narra toda uma história, exprime um dia, uma terra, um canto de sol e sombra. Lembro a cultura da minha terra, cultura de vinho, queijo e perfume. Os franceses são bruxos (Serres 1985 expôs com muita leveza alguns segredos que fazem com que os sentidos pensem: este filho de Hermes-Exu, grande navegador do claro-escuro, foi iniciado pelos donos da floresta).

Misteriosa, a ciência-Tempo. Do lado do evento, o orixá-Tempo,5 a intensidade-Tempo, patrono da nação Angola, que liga os ancestrais que moram na terra com os vivos, nós humanos, morando no ar. De paciência infinita ou muito brusco, terrível guardião do esperado e do inesperado, do previsível e do imprevisível, o Tempo. Aí, o evento é feito de fluxos que atravessam os ancestrais e o presente, os mortos e os vivos. Algo fica fora da compreensão, no mistério. O evento é momento que afasta o que atrapalha a obra, ele é como cavado, tirando o inútil. Daí fica uma linha, como na escrita dos haïkaï japoneses. Um método, não uma organização. O tempo faz a máquina, dá a forma, não a substância. O tempo "maquina" o evento. Cuidado: não se trata de passado, nem de instituído. Não são necessários a dimensão temporal na poesia, os tempos do verbo, as preposições, os advérbios, para o tempo-evento: a noite, um barco, o fremir de um pássaro. Eis o charme do tempo que não acontece, mas "eventa". Vapores de uma emoção-intuição: o segredo do Tempo, diferente do segredo de Ossãe, das folhas. Com o tempo encontramos a raiz do evento, a base que passou, transpassou a prova da duração. Por exemplo, apesar das suas irredutíveis diferenças, há algo que "faz evento", eternamente, em Weber, em Marx, na Escola de Chicago. Uma base que questiona sem cessar os pesquisadores. O evento-tempo abre o que estava arrebatado. Michel Serres encontrou uma expressão interessante desse fenômeno: o tempo está como uma folha dobrada e machucada. Assim, um lugar que acreditamos ser muito distante segundo a concepção ingênua do tempo linear, como por exemplo o Pórtico dos próprios Estóicos que inspiraram estas páginas, está ao nosso lado. Aqui está o Aiôn, o tempo infinito, no qual caminhamos sempre pelo meio, tão diferente do Cronos acostumado. Deleuze apontou alguns aspectos do Aiôn estóico, mas ficou distante daquele tempo africano que liga os mortos com os vivos, daquele tempo-árvore-Iroko, cujas raízes mergulham no mundo dos antepassados e cuja folhagem abraça os vivos. Na sua obra, Nietzsche foi o pensador do evento-tempo, marcando tanto o aspecto cortante e arriscado do orixá-Tempo como as lentas maturações que, da Aurora até o Crepúsculo, lhe permitiram mastigar e destacar o essencial.

Dobrando a espiritualidade na ciência

Qual a significação dessas considerações? É que fazer-ciência, aprender, logo ensinar, cuidar… todas as reações que temos com o saber são plurais: existem muitas entradas no conhecimento. Essas entradas são variadas, às vezes sendo classificadas pela academia em termos de "populares", "práticas", "teóricas". O fazer-ciência é um caminhar: o método (o caminho) cria o tipo de ciência que se possuirá. Não há um método, único, que seja científico. A ciência-Tempo é um tipo de ciência que Nietzsche opôs, na sua época, como "intempestivo", "não-atual", à ciência instituída, pois incompreensível pelos cientistas "normais". Hoje, as enfermeiras lutam pela dignidade epistemológica da ciência-Ossãe na academia. Mas não se trata somente de caminho, método. A ciência é, também, assunto de energias. Todos os cientistas não mexem com os mesmos tipos de energias; energias diferentes são envolvidas em práticas cognitivas diferentes. Por isso se diz que o caminho tomado participa do conhecimento produzido. A maneira de entrar no saber define um tipo de saber específico.

Agora devem-se discutir as idéias de universalidade e comunidade, pois a tradição africana é comunitária. Com efeito, o conhecimento não se transmite fora da vivência do iniciado na comunidade; as abstrações construídas (para falar aquela estranha língua acadêmica) são sempre relacionadas a um contexto enunciativo único, por exemplo o mito, com seus arquétipos, é uma narrativa que toma seu sentido somente em uma situação de diálogo, racional, emocional, sensível e intuitivo, com o ouvinte, no momento presente. Mas o mesmo mito está virtualmente grávido de sentidos múltiplos e plurais. Contrariamente à tradição racionalista ocidental, o nagô ou o banto afirma que o sujeito e o objeto, na relação de saber, são sempre dobrados um dentro do outro – o que não impede o surgimento de abstrações, de textos cujo sentido está aberto a significações diferentes. Daí, uma ligação original entre o comunitário e o universal: um outro nunca fará exatamente a mesma experiência ao criar as mesmas condições, uma vez que reencontrar as mesmas condições é impossível. Mexe-se com singularidades, conforme as tendências da ciência atual apontadas por Deleuze na primeira citação deste artigo. As abstrações – que são mais o resultado de uma operação de fusão que de construção (muito sólida, dura, a construção, que tem pouco a ver com as energias sutis envolvidas no processo de aprendizagem iniciático) – são aquelas noções universais que Spinoza, na Ética, II, Prop. XL, Escólio 1, definia assim:

Tantas imagens – imagens de homens por exemplo – se formam ao mesmo tempo no corpo humano, que ultrapassam a força de imaginar, não completamente de verdade, mas a tal ponto, todavia, que o espírito não possa imaginar nem as pequenas diferenças que existem entre cada um destes homens (tais como a cor, o tamanho etc., de cada um), nem o seu número determinado, e que imagine distintamente apenas aquilo em que todos são convenientes, enquanto o corpo está afetado por eles; pois é por isso que o corpo foi mais afetado, uma vez que foi por cada homem em particular; e isso, o espírito o exprime pelo nome de homem e o afirma de uma infinidade de seres particulares; pois, como já dissemos, ele não pode imaginar o número determinado dos seres particulares.

Mas, diferentemente do sábio da tradição ocidental que esqueceu as pequenas diferenças abandonadas no processo de abstração, o sábio nagô ou banto nunca esquece as singularidades que a língua, sem graça, traduz e trai através das noções universais. Ser filho de Xangô6 é ser ligado aos mitos de Xangô. Mas atuando esses mitos de modo, cada vez, único. E de maneira ainda muito especial, uma vez que existem 12 Xangôs diferentes. Isso, por falarmos em relação à singularidade comunitária, que cria confluências rumo ao universal que nunca esquecem suas origens sensíveis no múltiplo, no pipocado do existir. Era como o avesso das coisas, o estar afetado que os nomes sempre escondem e, aos poucos, esquecem. Mais direto, o lado que olha para nós, poder-se-ia receber a seguinte formulação: as várias entradas no conhecimento – e os múltiplos tipos de conhecimento criados por essas entradas – são, epistemicamente, isto é, consideradas em relação às características daquele que conhece, determinadas pelo campo de energias chamadas de "orixás". Pouparemos aos leitores uma relação de todos os orixás e do tipo de ciência que cada um providencia, para nos concentrarmos sobre uma questão difícil: podem-se transferir as características epistêmicas para epistemológicas? Isto é: o fato de que um filho de Xangô (Spinoza, provavelmente) não faz ciência como um filho do Tempo (Nietzsche), apesar dos numerosos pontos de encontro possíveis no conteúdo, significa, também, que as ciências são diferentes? Ou se trata da mesma ciência, considerada a partir de olhares humanos, filosóficos e até psicológicos, diferentes? Metaforicamente falamos de ciência-Tempo, de ciência-Ossãe etc. Ou será a metáfora o desvelamento da verdade? Responder a esta questão supera as nossas forças atuais. Indicamo-la, a fim de abrir o espírito dos cientistas sociais: "O que vocês estão fazendo?" "Com qual energia vocês agem, imaginam e pensam, ao escrever o seu livro ou artigo para uma revista especializada?"

Na área das ciências do ser humano e da sociedade, pretendemos experimentar a idéia heurística (hipótese impossível de ser comprovada mas orientadora e necessária para produzir o conhecimento) de que há uma policientificidade, um policientismo, como se fala de politeísmo. Isso, pelo menos por razões éticas: enfraquecer o orgulho dos cientistas, ao afirmar: "O seu Deus, a sua Ciência, a sua Sociologia, com tantos maiúsculos, é somente uma ciência entre as sociologias (ou psicologias etc.) possíveis!" A ciência, na sua unidade universal, no caso a sociologia, seria o jogo de diferenças e de semelhanças entre a sociologia-Xangô, a sociologia-Ossãe, a sociologia-Tempo etc., etc. Assim resgatamos a ligação entre sabor, saber e sabedoria (sabor: a diversidade da experiência, antes que esta seja nomeada, recoberta por noções universais; saber: produto de um conjunto de operações, nas quais os diferentes processos de abstração desempenham um papel central; sabedoria: união singular, em um ser humano, de sabores e saberes, que permite relacioná-lo com a Natureza inteira). O equilíbrio entre as energias naturais-espirituais chamadas de orixás, que a tradição africana preservou durante séculos, até em terra brasileira, permitiu vencer na prova sofrida por todas as coisas sob o sol: o tempo. Isso significa que a referida tradição mostrou o seu poder integrador da variedade humana. Daí mostramos o interesse heurístico de referir-se ao candomblé na nossa elaboração da ciência da sociedade e do ser humano. Os leitores que conhecem os mitos de qualquer tradição, grega ou outra, sabem que o olhar-ouvir-sentir que eles proporcionam é mais abrangente que o mero olhar científico. O afastamento da consciência da humanidade dos seus mitos, em nome da ciência, não foi uma boa coisa, pois, queiramos ou não, esses mitos agem. Assim age o mito da ruptura radical, que cada geração de cientistas reproduz em uma área do conhecimento ou outra, acreditando a ruptura ser um dado histórico "objetivo", empiricamente verificável, quando é uma das grandes figuras míticas do nascimento. A atitude reducionista que privilegia apenas um mito, como a psicanálise freudiana, gera do seu lado uma cientificidade parcial, mutilada. Por isso preferimos nos referir a um universo mítico completo, e convocar uma grande variedade de mitos para nos conscientizar e, logo, distanciar da implicação do discurso científico nas narrativas arquetípicas da humanidade.

O mito dentro do qual nossa ciência social pensa fica invisível, uma vez que estamos dentro dele; ele é nosso mundo, o ar que respiramos. Por exemplo, um grande cientista, o autor da Crítica da economia política, que estabeleceu as leis do valor e explicou a formação da mais-valia, precisava de mitos implícitos relacionados à energética e ao trabalho do ferro para fazer do "tempo de trabalho médio socialmente necessário" a medida de todo valor, inclusive do valor da força de trabalho. Vivia na época da termodinâmica, da máquina a vapor: sua ciência, até nos seus aspectos considerados como universais, estava implicada, dobrada nos mitos da idade do ferro. Isso não impede os problemas locais desenvolvidos pelos cientistas de estarem freqüentemente longe dos arquétipos míticos e suscetíveis, às vezes, de falsificação. Mas a orientação global da teoria é, pelo menos nas ciências humanas e sociais, baseada em seres lógicos ambíguos, intermediários entre a imagem e o conceito. Vemos assim que a ligação entre racionalidade e imaginário é uma ligação forte, característica do pensamento humano no seu aspecto criador, a imaginação. Mais uma vez citaremos Michel Serres (1994, pp. 229-230):

Existe mito na ciência, e ciência nos mitos. É ainda preciso narrar esta imensa história ou lenda, não fragmentada […]. A dicotomia está nas cabeças. E nas instituições; nos jornais; no intercâmbio convencional; nas grandes correntes de pensamento, como se diz. Em todos os lugares. Salvo nas ciências inventivas, ativas, e nas histórias de velhinhas. Salvo na ponta extrema, fina e rápida, e na base mais lenta. Salvo no cume da montanha onde se chega após esforços extremos e toda uma vida de treinamento, e entre os idosos, nas ocas do vale. Salvo em ponta e na base. No meio, o intercâmbio usual está cercado de nuvens, nevoeiros e vapores.

No lado das ciências experimentais, lembramos que o físico Niels Bohr (1995), cuja obra na área da física atômica marcou o século XX, definia o fenômeno como constituído tanto do objeto que estamos experimentando como do dispositivo experimental que permite a observação do mesmo. Já que o aparelho de medida interfere sobre o objeto a ser medido, ele pertence ao fenômeno. Isso é a grande revolução epistemológica da física quântica: um fenômeno não pressupõe somente um objeto ligado às nossas capacidades de perceber e raciocinar (o que seria um "fenômeno" no sentido de Kant), mas é um fenômeno enquanto estiver ligado ao dispositivo experimental, ao dispositivo que permite o conhecimento.

Isso é umas das coisas mais importantes que Bohr trouxe à reflexão epistemológica. É muito estranho que as ciências humanas tenham tantas dificuldades para reconhecer o que a física reconheceu há já mais de 50 anos, o fato de que cada abordagem teórica e cada dispositivo de olhar, da observação, modificam o objeto de estudo... que nunca estudamos um objeto neutro, mas sempre um objeto implicado, caracterizado pela teoria e pelo dispositivo que permite vê-lo, observá-lo, conhecê-lo. A nossa pergunta, logo, tem esta forma: Será que os mitos relacionados com as energias básicas da natureza (chamadas, na cultura afro-brasileira, de orixás) são implicados, queiramos ou não, nos fenômenos que pretendemos observar?

Uma resposta negativa conduziria de novo à visão tradicional da ciência, caracterizada pela sua ruptura epistemológica radical com o mundo mítico. Mas neste caso deve-se considerar com muita atenção os críticos radicais das ciências sociais e humanas que afirmam, como Popper (1985), que estas não são ciências, mas somente narrações, discursos de verdade e não discursos verdadeiros: como poderíamos criar um discurso sobre as narrativas sociais que escaparia às implicações características dessas narrativas?

Uma resposta afirmativa implicaria que assumíssemos as nossas implicações como partes constituintes do objeto estudado. Daí, uma dobra epistemológica – e não apenas epistêmica – da espiritualidade (no caso, africana) na ciência, o que é o limite que podemos atingir na alteração das posições instituídas, dicotômicas entre mito e ciência. Pode-se sempre reduzir a espiritualidade à ideologia e, logo, as implicações espirituais às ideológicas. O problema não desaparece: com efeito, a ideologia assim entendida contém um "núcleo de verdade" (conforme, por exemplo, o "bom senso" de Gramsci 1985), aspectos universais presos nas contradições históricas etc. que, por seu lado, a referência mítica assume sob o nome de arquétipos. No seu estudo famoso sobre a "imaginação científica", Gerald Holton (1981) parece ter encontrado alguns arquétipos imaginários que o pensamento científico desenvolve mais ou menos conscientemente (por exemplo, continuidade x descontinuidade). Queremos encontrar as narrativas (os mitos) pelas quais esses arquétipos receberam sua significação, o que permitirá, talvez, distinguir vários tipos de continuidade e descontinuidade. A nossa crença é que a velha humanidade, na sua experiência global, "sabe" aquelas coisas claro-escuras que desconhece a ciência normal, apesar de usá-las. É a crença inversa da de Bachelard (1972), que evidenciou a qualidade diferente (e superior) do saber dos cientistas que, heroicamente, se afastaram do claro-escuro do conhecimento ordinário, e criaram assim a juventude perpétua dos que souberam dizer "não" ao saber instituído, legitimado pelas melhores tradições. Quem enxerga bem, quando se trata das ciências da sociedade e do ser humano?

Com as velhinhas de Michel Serres escolhemos estar aqui, no limiar da loucura, do impensável, do inefável: contemplando a morte de um modelo, clivado, do pensamento. A morte do sol, da luz apoloniana, o nascer do conhecimento escuro, confuso, preto, não óbvio, que talvez será um dos paradigmas do século XXI.

A ciência pode ter o status paradoxal de uma disciplina fundada sobre mitos, que seja capaz de produzir objetos não-míticos

Assim pode a ciência-Ogum (a ciência segundo Deleuze-Guattari) produzir objetos não-míticos, isto é, que sejam traduzíveis na língua da ciência-Ossãe (a ciência procurada, por exemplo, pelas enfermeiras a partir da prática do cuidar) etc. A invenção científica, segundo a primeira, necessita da presença de uma máquina de guerra que captura e altera tanto os saberes acadêmicos como as práticas cotidianas do cuidar pelas profissionais; de acordo com a segunda forma de ciência, para inventar são necessários a cautela, o rigor, a precisão, a intuição e a sensibilidade daquelas que desenvolvem uma relação de empatiacom o paciente. Duas episteme, dois problemas, dois tipos de "objetos". Mas sempre a tradução é possível. É só "medir" o custo em traição da tradução – salvo ao considerarmos, fiéis à experiência daquele que está entre as duas línguas, isto é, do tradutor, quetraduzir, em lugar de perder informação, traz mais sentido, mais saber, mais vida ao texto original. Neste caso, "mediremos" o ganho em traição! – apostando numa filosofia positiva e alegre da diferença, da multiplicidade, da proliferação, contra a tristeza das filosofias da pureza, da autenticidade e da identidade.

As candangas, a nomeação e a alteração de Graziela-Adélia, Gradziélia a velada, a escondida, Graça a claro-escura filha que assobia na trovoada e no nevoeiro

No fascinante livro Bailarino-Pesquisador-Intérprete: Processo de formação, Graziela Rodrigues (1997) descreve o caminho e as energias encontradas na formação (ou talvez: no nascimento) do seu corpo sábio, pensador, de bailarina:

1) Freqüentou as mulheres candangas de Brasília, compartilhando incógnita, com os sentidos abertos e sem interpretar o que sentia, os ônibus, e em seguida uma agência de empregos domésticos. Ela comenta (idem, p. 18): "Diante da vida do povo sofrido, a gente não fala, só sabe calar: esquece as idéias do povo sabido e fica humilde, começa a pensar…"

2) Durante esses três meses de convivência diária, abriu-se um novo espaço. Por exemplo, uma história de grande desilusão contada por uma candanga era concluída por frases tais como: "Mas eu tenho a força da Pomba-Gira, ou a noitinha minha sereia penetra a fresta de meu barraco, cheia de luz trazendo um recado" (idem, p. 19).

3) De volta ao espaço profissional da sala de dança, a prática do diretor era trabalhar com base nos diários de campo:

No início o corpo não respondia, mas aos poucos foram emergindo registros emocionais, somatório do universo vivenciado na pesquisa de campo com a minha própria memória afetiva. O corpo foi assumindo várias sensações e configurações decorrentes das imagens de lugares vividos em campo e das imagens "desconhecidas" situadas em mim mesma. Estas imagens conjugadas apresentavam uma nova configuração de paisagem – espaço onde se desenvolvem experiências de vida, que se instaurava no corpo. (Ibid, p. 19)

4) Apresentou-se o nome da personagem, síntese de todas as mulheres da pesquisa, das mulheres candangas. Chamava-se Graça. Daí o nascimento do espetáculo: "Graça bailarina de Jesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil".

5) Graziela Rodrigues conclui teoricamente:

Vivi na própria pele umas tantas "mulheres obscuras", bem ditas por Cora Coralina, provindas de universos urbanos, suburbanos e rurais do Brasil. Elas me ensinaram a rebojar. O rebojo é a parte do rio onde as águas se agitam, rodando, pela presença de uma parte funda e afunilada de pedras. O perigo é denunciado pela efervescência das águas, cuja agitação atinge a superfície. Quando algum objeto ou pessoa cai no rebojo, vem à tona, rodando, antes de desaparecer. Rebojar é exatamente sair do fundo do rebojo até a veia d'água. (Núbia Gomes e Edimilson Pereira, 1988: Negras raízes mineiras: os Arturos) (Ibid., p. 20)

Não se trata da mera procura narcisista de si: é o próprio "corpo brasileiro", constituído na margem da sociedade, em festas e rituais populares (no caso, particularmente a umbanda), que é procurado. Sendo uma personagem-chave, encontrada no processo de pesquisa, uma Pomba-Gira chamada de Maceió, "Exu mensageira, ponte entre Europa e Recife, com desvio por Angola. Pomba-Gira, filha da feiticeira ibérica tradicional, revista pelo Portugal escravista e confirmada pela Colônia, onde tornou a cruzar mandingueiros e ciganos" (ibid., p. 29), é a constituição do povo brasileiro, notadamente através da escravidão e do confronto/troca entre culturas, tais como ela foi internalizada e silenciada dentro do corpo, que é interrogada na experiência singular de pesquisa de Graziela Rodrigues.

Os resultados obtidos, relacionados aos bailarinos que vivenciaram o Processo, deram-se principalmente quanto à descoberta de seu potencial e de uma autonomia quanto a sua condução. A consciência de seus preconceitos, o questionamento de valores, a aceitação de seus conflitos e a identificação de que o modelo encontra-se dentro deles produziram um sentimento por eles traduzido como de "estar com o corpo vivo". (ibid., p. 24)

Trabalho de empatia com as mulheres reais, que sofrem e resistem, descoberta dos corpos de mulheres conservados vivos nas culturas de resistência, colocação em crise do seu próprio corpo construído pela academia, expressão de um modelo espiritual de corpo popular, entre outros possíveis (virtuais)… para mim, a obra de Graziela Rodrigues situa-se na filosofia da sociopoética, teoria da pesquisa e do ensino-aprendizagem que caracterizamos a partir das cinco afirmativas seguintes, tomadas simultaneamente, que permitem transformar poeticamente para conhecer:

• pesquisar com todo o corpo, isto é, razão, emoção, intuição e sensação;

• não separar a arte da racionalidade na construção do conhecimento;

• relacionar-se aos saberes das culturas dominadas e de resistência;

• não separar ciência e espiritualidade;

• fazer com que os participantes da pesquisa se tornem co-pesquisadores.

Nossa proposta desenvolve-se no sentido de instituir um diálogo permanente, dentro da ciência, entre as culturas sobre o que é a ciência (ver Gauthier e Santos 1996). Daí idealizamos várias pesquisas inter e transculturais e criamos os encontros de Pesquisa Artística e Transcultural em Educação (Partranse), associando notadamente povos indígenas, pessoas do candomblé, movimentos sociais e movimentos de mulheres na busca de uma cientificidade co-produzida, e não imposta pela civilização colonizadora.

Na experiência de Graziela Rodrigues vejo, obviamente, uma ciência da transformação (pela crise e sua superação), graças à ação de um terço incluído, aos poucos desvelado no seu próprio corpo: Exu em sua forma feminina de Pomba-Gira. Vejo também um método e uma energética que se podem chamar de ciência-Oxalá.7 Em suas duas formas, Oxalá é uma máquina de alteração, pois ele é tão obstinado nas suas intenções que se torna capaz de descumprir as regras que ele mesmo se deu, depois de ter consultado Ifá, o destino. Durante muito tempo procuramos, na sociopoética, uma teoria da alteração do pesquisador, que completasse a teoria da implicação dos socioanalistas. Mas não queríamos uma teoria hegeliana, dialética de tipo: tese-antítese-síntese, que mantivesse a identidade sob a figura da alteridade. Queríamos uma teoria da alteração mesmo. Aí descobrimos a máquina de alteração Oxalá, muito diferente da máquina de guerra nômadeOgum (Deleuze-Guattari). Ela cria uma rede de intensidades que caracteriza um indivíduo, ou melhor, aqui, o rizoma individual Candangas-Graça-Graziela-Diretor-Pomba-Gira. Esse rizoma exprime a confusão no sentido de Michel Serres – dos mundos que atravessam a pesquisadora. Lembramos que, como criador, Oxalá velho, lento, que anda bem devagar quando se manifesta, gerou Exu-Iangui, o princípio do movimento sem o qual tudo estaria paralisado. Alteração pelo esquecimento, pela sapiência empática, pela oposição a si próprio, mas não existe, nesta poética da formação, nenhuma síntese, a não ser a ampliação do que a pesquisadora-bailarina Graziela chamava de "configurações da paisagem" – simbolizadas por um nome de estranha beleza: Graça bailarina de Jesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil – nas duas direções do Aiôn, nos mundos virtuais da história não escrita (salvo nos corpos das dominadas), das trilhas desconhecidas em que passado e futuro trocam suas apelações. Daí, a Graça, puro evento.

Conclusão

Tomamos por referência experiências vividas em culturas tipicamente brasileiras, tais como o candomblé e a umbanda, a fim de participar da descolonização dos espíritos (e dos corpos!). Podíamos, com o mesmo rigor, referir-nos à mitologia grega ou taoísta, ou, sempre dentro de uma perspectiva de descolonização, a uma mitologia indígena. Nos parece que o problema da crise do paradigma nas ciências da sociedade e do ser humano poderá ser resolvido somente ao consentirmos uma radical revisão das relações entre ciência e mito, entre ciência e arte, entre ciência e culturas de resistência. Por quê? Porque pensamos que as ciências da sociedade e do ser humano não se enraizaram de maneira satisfatória, ao esquecerem que os grupos humanos são criadores de significações e sentidos. A ciência deve reconhecer que ela é, também, uma criação de significações entre outras, que se articula com essas outras, e não pode isolar-se numa torre de marfim. Assim como existem "jogos de linguagem" (Wittgenstein 1953), existem "jogos de significações", com uma problemática complexa de traduções, fusões, ironias, simulações etc. Pesquisar, entender, conhecer, assim, é brincar no jogo das significações virtuais. Pouco importa que as entidades das religiões afro-brasileiras sejam verdadeiras ou não passem de seres ilusórios. O que é significante é que elas pertencem a um sistema organizador da experiência potente (pois muito diferenciado), suscetível de experimentação e negociação. Daí, a nossa ciência não pode fazer como se este chão de significações não existisse e se construir através da assim chamada "pureza" de rupturas epistemológicas que acreditariam se livrar definitivamente desse chão mítico. Não é assim: a posição da pesquisa científica é de interação polifônica com as significações já construídas pela humanidade – o que não impede momentos de franca ruptura, mas nunca "puras". Como apontou Michel Serres em Atlas, podemos estudar essas interações polifônicas COM (problema da comunicação e do contrato), ATRAVÉS DE (problema da tradução), ENTRE(problema das interferências), POR (problema das passagens), AO LADO DE (problema da parasitagem) e FORA (problema do distanciamento). Todas essas posições relativas entre a ciência e os outros sistemas de significações devem ser meticulosamente exploradas, assim como começamos. Às vezes, nossa contribuição foi orgulhosa. Mas foi somente a expressão momentânea do nosso "rebojar". Indicamos um problema, experimentamos uma trilha até seu limite, para tentar resolvê-lo. Se fomos além do razoável, até a vertigem, foi o preço do risco. Este texto já está chamando respostas.

Notas

1. Obviamente, o devir-mulher, tanto difícil para a mulher como para o homem, não impõe nenhuma cirurgia! É o devir-político de quem pensa a mulher fora da imposição criada pelo gênero dominante de escolher entre o homem e a mulher. Como apontou Garfinkel (1967), Agnes é muito conservadora: ela quer consertar para conservar, nela, o gênero instituído "mulher". Ela não inventa uma linha de fuga nova: ela quer um território bem conhecido, que a natureza não soube lhe dar. A linha de fuga não é Agnes: ela existe entre Agnes e Garfinkel. É a máquina de guerra Agnes Garfinkel, nova singularidade, nova individualidade, que é o analisador da produção social das categorias de gênero.

2. Elogiando o conhecimento claro-escuro, Michel Serres, que se diz profundamente ligado a Hermes, o Deus mensageiro, merece uma menção especial. Ele enxergou alguns mistérios na escuridão da lama. Meditemos, logo, a seguinte citação, de profunda sabedoria: "Nos livros Rome e Státuas é muitas vezes elogiado o gesto latim de enterrar, encobrir, esconder, colocar na sombra para conservar, opondo-o ao gesto grego de colocar na luz. É pronunciado o elogio mesmo da implicação, do dobramento da massa pelo padeiro e pela padaria, mais que da explicação: aí se encaram dois tipos de conhecimentos, cujo segundo só praticamos e estimamos […] Ora, tirar da escuridão é muitas vezes como destruir, e colocar na sombra como proteger. Nunca calculamos o preço dos nossos métodos, os acreditando gratuitos. Tudo se paga: até a clareza, pela escuridão ou destruição às vezes. Dever-se-ia inventar uma teoria do conhecimento escura, confusa, preta, não óbvia, uma teoria do conhecimento adélia – este adjetivo bonito, de sonoridades femininas, significa isso: o que se esconde e não se mostra. Muito antes que a ilha apoliniana de Délos se nomeasse assim, ela se chamava de Adelos, a velada; se você já tentou abordá-la, você sabe sem dúvida que, muito freqüentemente, ela se esconde na trovoada e no nevoeiro. A sombra acompanha a clareza como, em outros lugares, a antimatéria avizinha a matéria" (Serres 1994, pp. 214-215).

3. Orixá patrono do movimento, da expansão, do desenvolvimento. Diz a tradição nagô que cada ser e cada coisa tem o seu Exu particular; sem ele, todo o sistema de seres e coisas estaria paralisado. Exu constitui o princípio da existência individualizada. É o principal responsável pela integração entre orun e aiê, céu e terra, sendo considerado o mensageiro dos demais orixás. (In: Sodré e Lima 1996). Exu tem o poder de desfazer o que ele fez, logo, desmembrar o indivíduo.

4. Sodré e Lima continuam: "Segundo alguns mitos, transforma-se em touro. Segundo outros, em borboleta. Certa qualidade de Oiá é patrona dos espíritos ancestrais. Também conhecida como Iansã."

5. Orixá padrão dos candomblés da nação Angola. Materializado nos terreiros por uma árvore sagrada que se enraíza no mundo dos ancestrais e desenvolve sua folhagem no mundo dos vivos, o orixá-Tempo se manifesta através de formas muito firmes, afirmativas que cortam, mudanças inesperadas, e também por regulações visíveis e invisíveis, esperas sem limites…

6. Orixá do trovão, ancestral divinizado da dinastia dos Alafin, reis da cidade iorubá de Oió. É associado ao elemento fogo (Sodré e Lima, op. cit.). Zaze pelos Bantos.

7. Orixá considerado o pai da criação, relacionado aos elementos água e ar e à cor branca. Simboliza o princípio masculino (Sodré e Lima, op. cit.). Oxalá se realiza em duas formas: Oxaguian, o jovem guerreiro, e Oxalufan, o velho sábio que traz paz, dedicação ao próximo e harmonia.

What is searching? Between Deleuze-Guattari and Candomblé, thinking about myth, science, art and cultures of resistance

ABSTRACT: Actual science is a science of events and occurrences. After Deleuze, studying the difference between event and occurrence in the stoician philosophy, the author characterises several ways to "make science": the double capture which is, in a transcultural vision, related to the god Ogum in the candomblé; the dark maturation, related to the goddess Ossãe etc. After Spinoza, the question of the local and the universal in the construction of knowledges is examined; after Michel Serres, the problem of articulation between myth and science. Graziela Rodrigues' research, `Bailarino-pesquisador-intérprete: Processo de formação' is an example of an innovated, transcultural and social poetic approach. There's a question left to conclude this article: does the end of colonisation of spirits (and bodies) pass though the creation of a transculturalepisteme?

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* Doutor em Ciências da Educação; Pesquisador da Universidade de Paris III;(Equipe de Pesquisa Pós-Doutoral ESCOL Education, Socialisation et Collectivités Locales); Pesquisador do Desenvolvimento Científico Regional CNPq / Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Email: socpoet@snv.com.br

Revista Brasileira de Educação - The question of metaphor, reference and sense in qualitative research: the contribution of socio-poetics

Revista Brasileira de Educação - The question of metaphor, reference and sense in qualitative research: the contribution of socio-poetics


A questão da metáfora, da referência e do sentido em pesquisas qualitativas: o aporte da sociopoética

The question of metaphor, reference and sense in qualitative research: the contribution of socio-poetics

Jacques Zanidê Gauthier

Lycée de Muret, Académie de Toulouse


RESUMO

Examina a questão da produção de sentidos heterogêneos pelos sujeitos e pelo pesquisador nas pesquisas qualitativas. Em referência ao conceito de agenciamento coletivo de enunciação e aos seus quatro componentes segundo Deleuze e Guattari, focaliza seu estudo sobre a questão da metáfora, do seu sentido e do mundo inter-referencial que ela cria na linguagem comum e no processo de pesquisa. Em referência aos estudos de Ricoeur e à semiótica de Peirce, mostra, com base em pesquisas recentes desenvolvidas na área da educação popular, como a sociopoética (método inovador de pesquisa que utiliza técnicas artísticas de produção de dados e confia no corpo inteiro como fonte de conhecimentos) articula os afetos e os conceitos, favorecendo assim vários tipos de abdução ou intuição. Isso permite a criação de confetos, intermediários entre o conceito e o afeto, assim como de conceitos filosóficos pelo grupo-pesquisador, sujeito e autor coletivo da pesquisa.

Palavras-chave: pesquisa qualitativa; sociopoética; metáfora; conceito


ABSTRACT

Considers the question of the production of heterogeneous meanings by the subjects and by the researcher in qualitative investigations. In reference to Deleuze and Guattari’s concept of collective stating arrangement and its four components, the article focuses its attention on the question of the metaphor, its meaning and the inter-referential world that it creates in common language and in the process of research. It reveals that with reference to Ricoeur’s studies and Peirce’s semiotics, and based on recent research in the domain of popular education, socio-poetics – an innovative method of research, which uses artistic techniques for the production of data and trusts in the whole body as a source of knowledge – articulates affects with concepts, and promotes different kinds of abduction or intuition. This promotes the creation of “confects”, intermediaries between concepts and affects, as well as the creation of philosophical concepts by the researcher-group, subject and collective author of the research.

Key-words: qualitative research; socio-poetics; metaphor; concept


A posição do pesquisador em relação aos sujeitos da pesquisa

A pesquisa qualitativa, na área de educação como em outras ciências do ser humano e da sociedade, possui umstatus cognitivo especial. O problema que desenvolvo aqui é o da relação entre o pesquisador e as pessoas sujeitos da pesquisa, em termos de produção de conhecimentos: Que tipo de conhecimentos cada um(a) produz, e qual o status da operação cognitiva específica, realizada pelo pesquisador a partir dos dados da pesquisa?

Essa questão é filosoficamente difícil, pois os dados de pesquisas qualitativas não são dados objetivos, positivos, brutos, e sim narrativas (histórias de vida…), entrevistas coletivas e individuais, produções artísticas, ou seja, produções de sentido. Os dados já são interpretações do mundo, dependentes de quadros conceituais culturalmente marcados, em que posições políticas estão em jogo, lutas simbólicas, fraturas e redes de alianças, que permitem a negociação e constituição do sentido. Autores como Bakhtin (1992), Bourdieu (1982) ou McLaren (1997) nos deram instrumentos teóricos para termos uma visão crítica e lúcida sobre as lutas na constituição do sentido das práticas sociais e na enunciação de palavras que revelem ou dissimulem esse sentido. Do seu lado, a etnometodologia e o interacionismo simbólico favorecem a compreensão das alianças e do implícito a partir dos quais os grupos se constituem como tais, ao produzirem identidades relativamente estáveis, negociadas e instituídas (Garfinkel, 1967). A corrente chamada de pós-colonial, com autores como Bhabha (1998), realiza uma forma de síntese entre a tradição centrada sobre o conflito, marcada pelo marxismo, e os aportes da microssociologia, referida a orientações fenomenológicas; assim podemos dizer que, no início do século XXI, o sujeito das enunciações, o eu falante, encontra-se cada vez mais no centro da problemática da constituição do sentido: ninguém pode falar no lugar dele, e só ele é dono de suas identidades - que foram descobertas como plurais, conflituosas e até provisórias -, assim como do sentido das suas palavras. O sujeito falante não é mais o rei cartesiano, uma consciência soberana. A crítica feita pelas filosofias da desconfiança (Nietzsche, Marx, Freud) é, neste ponto de vista, decisiva: a consciência de si traz muitas ilusões, ou seja, erros dos quais gostamos e, até, que participam do sentido que damos à nossa experiência e prática social. Mas os pensadores oriundos de povos que sofreram a colonização insistem em dizer que interpretar no lugar do outro o sentido de sua fala, como faz, às vezes, o pesquisador em relação aos sujeitos de sua pesquisa, é alienar esse outro, tirando-lhe sua própria humanidade de sujeito falante.

Deste ponto de vista, a abordagem proposta por Barbier (1993), baseando-se na noção de escuta sensível e em uma certa forma de consciência noética, permite instrumentalizar a pesquisa de campo em direção a um respeito da pluralidade, do íntimo e até do segredo. Eticamente, não se deve esquecer que pesquisar o outro é um ato de violência simbólica para com ele. Serres (1997, p. 15) formulou isso com vigor:

Observaram que a curiosidade exerce-se constantemente sobre os mortos e sobre os fracos sem defesa e nunca a propósito dos poderosos? Os sujeitos das ciências humanas diferem dos seus objetos, não são os mesmos homens. Já encontraram na estrada para Paris uma organização de camponeses indo para a capital para elucidar os usos dos seus administradores? Ou, voando para os Estados Unidos, encontraram no avião uma escola de Zulus ou de Guaranis, indo para realizar um seminário sobre alguns sábios em destaque da América? Outrora, os dominantes colonizavam os dominados, agora eles nos observam.

Queria que se inscrevesse nas constituições o direito dos homens e dos povos de recusarem ser estudados. (tradução minha)

Realizar uma pesquisa é assumir um status de poder sobre os sujeitos da pesquisa, a partir de um lugar cognitivoespecífico. Da mesma maneira que esses sujeitos produzem o sentido de suas palavras em complexos processos de lucidez e cegueira, luta e negociação, identificação e desidentificação, o pesquisador produz o sentido (em processos semelhantes de lucidez e cegueira, luta e negociação, identificação e desidentificação) de sua própria fala em direção aos pesquisados e, sobretudo, ele produz o sentido da escrita final de sua pesquisa, cuja existência não teria sido possível sem a participação e colaboração dos sujeitos da pesquisa (dissertação, tese, relatório de pós-doutorado…).

Os pesquisadores da nossa área, tendo conhecimento dos teóricos que fazem essas considerações, podem assumir uma posição de vigilância epistemológica, pois são teoricamente armados para irem ao campo de pesquisa. Eles possuem um olhar crítico a priori sobre a cegueira específica gerada pela sua posição de poder no saber (Foucault, 1976) e são teoricamente capazes de analisar sua implicação no seu objeto de pesquisa, ou seja, seu inconsciente institucional (Lourau, 1970; 1988): o que está em jogo e pertence de maneira escondida ao processo de pesquisa, à busca, à constituição do objeto de estudo e dos métodos de investigação no campo simbólico e ideológico, no campo pulsional, no campo material e organizacional?

A dificuldade começa quando se trata de ir além da proclamação da exigência ética de respeitar os desejos e direitos dos sujeitos da pesquisa e de construir um distanciamento crítico para com sua própria posição institucional. Quando, no decorrer mesmo da pesquisa, interferem esses processos complexos de produção de sentidos, a partir de posições de poder dissimétricas. Para pensarmos melhor o campo semântico assim criado, proponho retomar a questão do sentido e da referência. Mas não se tratará de repetir as discussões clássicas de Bertrand Russell (1961) e Frege (1952) no campo da lógica, independentemente dos aportes das recentes teorias lingüísticas da enunciação. Encontramos na obra de Deleuze e Guattari (1980) uma conceitualização, desses aportes, diretamente utilizável pelos pesquisadores de campo.

Agenciamentos maquínicos e enunciativos

Segundo Deleuze e Guattari (1980, p. 112), existe um duplo agenciamento, de conteúdo e de expressão que chamamos duplagem:

O agenciamento maquínico de corpos, ações e paixões, mistura de corpos agindo uns sobre os outros.

O agenciamento coletivo de enunciação, de atos e enunciados, transformações incorporais atribuindo-se aos corpos (grifos do original).

Os autores continuam precisando:

[...] o agenciamento tem, de um lado, lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e de outro lado,pontas de desterritorialização, que o levam embora (idem).

O que é um agenciamento maquínico de corpos, ações e paixões?

Corpos atraem-se, repulsam-se, alteram-se, fazem alianças, combinam-se em aliagens, expandem-se, penetram-se, excluem-se. Esses corpos podem ser corpos ou partes ou grupos de corpos humanos, e seres naturais, ferramentas, máquinas, energias, que se compõem ou transformam segundo regras, em tempos e lugares instituídos. Assim, a vida familiar numa classe dada da sociedade é um agenciamento maquínico, outro é a vida numa faculdade, ainda outro uma organização comunitária. O importante é que existem nessa máquina física poços de captura, que atraem as energias em pontos instituídos, repetitivos, reprodutores dele, devoradores; e existem, inversamente, linhas de fugas desejantes, criadoras de jogos não previstos, que nem sempre vêm por vontade própria das pessoas, mas perpassam o conjunto de corpos e afetos. Uma forma de desordem criadora, de caos na organização.

O que é um agenciamento coletivo de enunciação?

Ele é composto das múltiplas falas e discursos possíveis que produzem a subjetividade - essa não é individual, e sim coletiva, conectando signos diversos. As enunciações não representam os conteúdos (os corpos e afetos), pois possuem forma e coerência próprias. Elas podem antecipar, atrasar, tirar, cortar, juntar diferentemente… esses conteúdos. Retomemos os exemplos da cultura familiar, ou universitária, ou comunitária. Vê-se facilmente a importância desse agenciamento complexo de enunciados na constituição mesmo da subjetividade, assim como daquilo que é chamado de cultura. Existem poços, rios, trilhas, avenidas, terras, ventos, fronteiras, fluxos, toda uma geografia onde as palavras se juntam, comem, pegam, apagam, superpõem, parasitam, traem, espalham, escondem. Aqui também, o relevante é a existência de pontos de territorialização, que atraem vários discursos no mesmo campo semântico, fazem ecoar uns em outros, conectando-os, ou então supercodificando, numa forma geral dominante, conteúdos diversos. É por um processo de supercodificação que se produz o que Gramsci (1977) chamava de cultura hegemônica. Mas existem também pontos de desterritorialização, expressões de desejo instituintes, palavras que não podem ser capturadas pela ordem instituída. O que a linguagem política chama deculturas de resistência são conjuntos de linhas que convergem em direção a um território, ou até criam um território novo, cuja ordem semiótica é heterogênea em relação à ordem instituída, e não é capturada. Como na filosofia de Michel Foucault, as relações de poder e desejo estruturam o campo de enunciação (Deleuze & Guattari, 1980, p. 101):"Não há significância que seja independente dos significados dominantes, não há subjetivação que seja independente da ordem estabelecida de sujeição".

Bacias de captura1 interligadas geram o que é chamado de cultura dominante ou hegemônica, enquanto agenciamentos discursivos heterogêneos, parcialmente capturados por esses significados dominantes, produzem o que é chamado de cultura dominada. Por exemplo, a canção popular, quando submissa aos padrões estéticos e econômicos do showbiz, ou ainda as formas de expressão dos afro-descendentes, quando tornadas invisíveis ou folclorizadas em padrões utilizados pelas classes dominantes.

Uma forma de resistência interna a um agenciamento é a variação, que dificulta qualquer forma de codificação prévia. Multiplicar as variações, des-homogeneizar, é criar a autonomia, resistir à média onde mora a maioria. Criar ligações inesperadas é uma outra forma de resistência. É a desterritorialização, a emergência de desejos instituintes.

Os componentes dos agenciamentos coletivos de enunciação

Os agenciamentos coletivos de enunciação podem viver segundo quatro componentes de signos diferentes (Deleuze & Guattari, 1980, p. 181-182), que a pragmática ou esquizo-análise, ou ainda rizomática, estuda. Conscientizar-se desses componentes é de fundamental importância na análise dos dados, ou seja, na análise do agenciamento coletivo de enunciação produzido pelos participantes da pesquisa. Encontramos:

  • O componente generativo, que mostra como toda expressão combina vários regimes de signos. Isso significa, por exemplo, que não existe uma cultura pura, que não se pode adjetivar de maneira unívoca a cultura. Por exemplo, expressões como cultura popular, cultura indígena ou cultura burguesa não possuem nenhum sentido unívoco, sendo geradas por combinações de desejos (Deleuze & Guattari, 1980) e por articulações de poder (Foucault, 1976). Não é necessário uma coerência a priori entre os elementos interligados para que se criem constantes, comportamentos previsíveis, habitus. A coerência pode ser criada après-coup, por um processo de supercodificação, de ecos que se reforçam mutuamente. Para o pesquisador, o difícil é desconfiar da armadilha da coerência e da coesão entre os discursos, pois muitas vezes essa coerência só tem por função simplificar e homogeneizar o que é heterogêneo. O erro é acreditar na unicidade orgânica das formas de vida discursiva e incorporar essa simplicidade. Diante disso, a pesquisa resgata a polissemia dos signos. Não se deve temer a ambigüidade, a ambivalência e o paradoxo, que sempre são índices de um problema interessante.
  • O segundo componente é, na teoria de Deleuze e Guattari (1980), o componente transformacional, que mostra como um regime pode ser traduzido num outro, e um novo ser criado a partir de transformações.Um exemplo conhecido é o nascimento do candomblé no Brasil, por interferência entre formas de vida coletiva e espiritual características de vários povos africanos deportados pela escravidão. Uma questão vai ser de se entender como tal criação transformacional pode agir em outras áreas da realidade, até que ponto ela pode ser traduzida na esfera do trabalho, da vida do bairro, da educação etc. É muito provável que, num país que se fez pela imigração e miscigenação, forçadas ou voluntárias, os processos discursivos de tradução e transformação estejam muito ativos nos posicionamentos dos sujeitos falantes nas nossas pesquisas.
  • O terceiro componente enunciativo é o componente diagramático, em que é visível como signos são extraídos de formas originárias, aparecendo como partículas desterritorializadas, capazes de serem combinadas entre elas. O samba carioca nasceu provavelmente dessa forma, a partir de tradições musicais do povo negro (samba de roda de ritmo Cabula), em interação com a classe média branca, com um complexo sistema de irrupção de marcadores rítmicos e corporais negros,e de tentativas de controle social da parte das classes dominantes.A MPB é rica de criações do que Deleuze e Guattari (1980, p. 183) chamam de "[...] dialeto do gozo, de físicas e semióticas em pedaços, de afetos não subjetivos, de signos que nada significam, onde caem a sintaxe, a semântica e a lógica". Podem ser o pior ou o melhor, o xarope e a vulgaridade de algumas produções comerciais, mas também a desarticulação do corpo e o nascimento de sopros nunca ouvidos. Encontramos aqui os marcadores da semiótica corporal infra-lingüística,2 que vários autores (Bakhtin, 1970; Kristeva, 1969) valorizaram muito pelo entendimento do sentido político do que é dito e sugerido. Com efeito, o corpo é o lugar em que os valores podem ser invertidos (no pensamento carnavalesco de Rabelais, segundo Bakhtin) e em que as entonações, os gritos e sussurros expressam o que escapa da ordem semântica: da intencionalidade racional, das classificações políticas impostas entre o que pode ser dito e como, e o que não pode ser expresso. Nossas pesquisas não podem perder essa dimensão, particularmente explícita nas classes populares, da constituição do sentido das práticas sociais pelos sujeitos das pesquisas educacionais.
  • O quarto componente é o componente maquínico, em que os dois agenciamentos, as duplagens, interferem uma na outra. As expressões modificam os corpos e as paixões, enquanto esses geram formas de expressão novas. Alguns chamam isso de práxis, outros de clínica. Em pesquisas cujo método consiste em transformar para conhecer, ou seja, introduzir uma perturbação no meio para estudar as suas reações, esse componente está particularmente presente.

Essa caracterização dos componentes enunciativos por Deleuze e Guattari é muito interessante, por ser fácil de usar na análise dos dados em nossas pesquisas. Além disso, ela realiza uma boa síntese dos conhecimentos trazidos pela lingüística do discurso e da enunciação. É só seguirmos esse quadro de pensamento e ganharemos muito em termos de precisão nas análises enunciativas dos dados.

A questão da metáfora, do sentido e da referência

Para facilitar tal procedimento, é desejável tomar como foco prioritário de estudo as metáforas utilizadas pelos sujeitos da pesquisa. Por que as metáforas?

Porque elas possuem um status ambíguo na linguagem, que tornam fáceis de serem vistas as ligações entre agenciamentos, as desterritorializações dos significados, as traduções de um regime de signo para um outro e a combinação desses regimes, ou seja, os quatro componentes enunciativos acima mencionados.

Com efeito, além de definirem a metáfora como uma comparação implícita entre termos oriundos de registros heterogêneos, muitos lingüistas (Ricoeur, 1975) consideram-na como uma regra constitutiva da língua que indica como se pode encontrar ou criar um objeto diferente e semelhante, e, ao mesmo tempo, apresentar intuitivamente o ícone desse objeto. Portanto, a metáfora está entre o mundo do sentido (interno à linguagem) e o mundo da referência (da realidade não-lingüística). Ela é o índice de um trabalho do espírito, que elabora um conflito, uma tensão dentro da língua (entre o que a metáfora é, por ser semelhante, e o que ela não é, por ser diferente), e entre a língua e o real (pois a metáfora visa a algo que não está dado, que não está presente, eladá vida a um produto da imaginação).

Em minhas pesquisas, essa característica de se dar entre os significados e entre a língua e o mundo, faz da metáfora um potente instrumento de identificação do sentido que os sujeitos projetam no mundo. Nossa escuta sensível pode tranqüilamente ser focalizada nas metáforas das gravações oriundas de minhas pesquisas de campo; tenho certeza de encontrar aí um tesouro de dados interessantes. Com efeito, metáforas usadas, quando escolhidas pelos sujeitos das pesquisas, apontam para uma certa dependência para com as ideologias instituídas, para um certo fechamento numa territorialização prévia, enquanto a criação de metáforas vivas, como diz Ricoeur, quebra as categorizações congeladas da língua e do mundo, resgatando o poder classificador originário da linguagem e criando um esboço de significações (discursivas) e percepções (intuitivas) novas. Paul Ricoeur (1975, p. 263) fala, até, de "desmancho das áreas semânticas sob o choque das contradições".

Hester (1967) relaciona diretamente essa característica das metáforas ao poder de metaforização, que é um dos princípios geradores da linguagem. Uma metáfora tomada a sério obriga o ouvinte a suspender sua relação instituída com o real, já constituída de muitas metáforas mortas, esquecidas, que caíram fora do campo da consciência, e a abrir-se para o virtual: ver-como é deixar acontecer o evento do fluxo das imagens, deixar-setrabalhar pela imaginação criadora, sem perder de vista que esse fluxo não acontece sem regra nem ordem, e sim é um produto de condições sócio-históricas (coletivas e individuais) que trabalham a linguagem coletiva, assim como nossa fala privativa.

Entre pensamento e experiência, entre o coletivo e o singular, a metáfora é, como escreve Ricoeur (1975, p. 271), "a solução de um enigma", ou seja, o paradoxo da passagem intuitiva para o não-verbal (ver a imagem), através um tropismo da língua.

Em termos de pesquisa qualitativa, encontramos aqui essa tensão muito produtiva, para nós pesquisadores da área educacional, entre os conhecimentos prévios dos sujeitos da pesquisa e o que eles sabem não saber, ou melhor, querem e imaginam, mas sabem ainda não saber. Será que aí se vai constituindo uma vygotskiana zona de desenvolvimento proximal,3 no próprio processo de pesquisa, entre os sujeitos da pesquisa e o pesquisador?

Além dessa importância cognitiva, Bachelard (1957, p. 7) expressa a importância ontológica da imagem poética:

[...] ela torna-se um ser novo da nossa linguagem, ela nos expressa ao fazer de nós o que ela está expressando, ou seja, ela é, ao mesmo tempo, um devir de expressão e um devir de nosso ser. Aqui, a expressão cria algo do ser.

Para nós, pesquisadores, é de fundamental importância o sétimo estudo, "Metáfora e referência", da obra citada de Ricoeur (1975), A metáfora viva. O sentido das falas ditas e/ou escritas, numa pesquisa qualitativa, seja pelo pesquisador acadêmico, seja pelos sujeitos da pesquisa, está totalmente dentro do que é dito. Geralmente, os lógicos concordam com Russell e Wittgenstein que, contra as visões positivistas e científicas comuns (armadilha na qual o desencantamento do mundo nos faz cair), chamam os fatos de existência de estados de coisas, expressando assim que os fatos são, na verdade, atos predicativos da mente humana. O fato não é a referência, aquilo que existe em si. A referência denotada pela descrição (há…) pode somente ser aquilo que é visado pelo mundo do sentido, pelo discurso. Agora, o que podemos dizer sobre o que somente está aqui, ou não está? Areferência,chamada por Frege de denotação,abre para o além do dito, ou seja, para aquilo sobre o qual é dito o sentido. Isto é, nas nossas pesquisas, para o mundo social visado. Conhecemos esse mundo referencial em negativo: ao falarem, os sujeitos da pesquisa torcem o sentido das palavras comuns, segundo a singularidade de cada situação, visão, projeto. É essa singularidade que devemos apontar, para podermos, em seguida, interrogá-la em relação à sua contribuição para efeitos enunciativos reprodutores das metáforas instituídas ou criadores de metáforas novas, vivas, entrando em composições, traduções, diagramas ou máquinas enunciativas que a teoria proposta por Deleuze e Guattari permitem identificar.

É esse processo de torção, no qual algo é dito do real ao mesmo tempo que dito de outro jeito, estranhando o familiar, ou seja, visando uma realidade outra, virtual, que está presente na metáfora viva como emergência de um sentido ainda desconhecido. Chamamos de sociopoética nosso método de pesquisa método no sentido de Morin (1986), ou seja, caminho que se faz caminhando, mais aberto para o imprevisto do que seria uma metodologia precisamente porque estamos atentos à experiência radical que a poesia propõe: em lugar de descrever o que é dado, como faz o uso comum, positivista e utilitarista, da linguagem, ela afasta do julgamento comum e pretende ir até o limite da potência de criar o mundo, presente na linguagem (Coletivo de autores, 1999; Gauthier, 1999a).

O poema como agenciamento discursivo é uma unidade metafórica: como a metáfora, mas num sentido mais amplo, ele transfere o que era pertinente em certos agenciamentos de corpos no mundo das coisas sem interesse e dá a maior pertinência ao que era impertinente. Cabe aos leitores fazerem uma parte do caminho.

Como um poema o realiza de maneira radical, a metáfora traz tensões num mundo que se apresentava como pacífico, desproblematizado. É isso que é apaixonante para os pesquisadores que buscam uma reproblematizaçãodo mundo. E quem vai reproblematizar esse mundo, a não ser os próprios sujeitos da pesquisa, no quadro de um dispositivo que facilite essa operação cognitiva?

Além disso, a metáfora cria suas referências num modo virtual, o que permite à lingüista Hesse (1965) falar deficções heurísticas e afirmar que a racionalidade se constitui, nas próprias ciências, pela expansão de metáforas, de onde surgem os principais modelos cognitivos utilizados pelos físicos. Como os modelos científicos, os mitos funcionariam segundo esse mesmo princípio de expansão metafórica, apresentando coisas humanas na forma de aventuras divinas sistematizadas.

Daí o aspecto social contido na palavra sociopoética. A poética presente na criação verbal dos participantes da pesquisa funciona de modo coletivo, marcado cultural e socialmente, e também de modo cooperativo: na produção coletiva de um mundo metafórico, ou melhor, na interferência de metáforas referidas a mundos semânticos heterogêneos, o grupo das pessoas sujeitos da pesquisa elabora ficções, desenha modelos de uma realidade sem dúvida complexa e imaginária, mas racional. O dispositivo de pesquisa deve, nesse momento, ser suficientemente potente para catalisar a expansão poética desse processo de metaforização e, em seguida, favorecer sua análise crítica pelos próprios sujeitos da pesquisa.

O interessante é que a ficção heurística vem da impertinência semântica contida na metáfora. Da qualidade de suas tensões internas e da pertinência de sua impertinência (de seu deslocamento problematizador das referências) depende a justeza da metáfora, ou, para falar como Foucault (1976), seus efeitos de verdade.

Impertinência semântica e abdução

Como processo cognitivo, a metáfora é um raio que gera uma nova categoria de conhecimento envolvendo dois campos de saber, alterando nossa compreensão de um como do outro e, sobretudo, realizando um deslocamento no pensamento, uma fuga criadora em direção a terras novas. Ela favorece processos intelectuais intuitivos. Isso é particularmente relevante nos estudos culturais, quando interferem campos de saber e aprendizagem heterogêneos.

Lembremos as quatro formas de abdução, forma lógica que a língua comum chama de intuição, segundo Peirce4(Eco, 1991, p. 228-229): hipercodificada, ela acontece quando interpretamos o significado de uma palavra a partir de uma reconstrução do contexto; hipocodificada, quando escolhemos uma hipótese entre várias, baseados na crença da regularidade do mundo; criativa, quando reinventamos uma lei deste mundo, por exemplo, ao intuirmos relações inesperadas entre áreas heterogêneas; a quarta forma é a meta-abdução, quando decidimos que o universo que imaginamos no nosso pensamento corresponde ao universo da nossa experiência cotidiana. Para Umberto Eco, esta última forma caracteriza a criação científica e a investigação policial.

Encontramos, diretamente, na terceira e na quarta forma de abdução, a ação da metáfora na construção do conhecimento.

Particularmente, é provável que nas nossas pesquisas interculturais encontremos freqüentemente, nas metáforas utilizadas pelos sujeitos das pesquisas, abduções potenciais, que só precisamos desenvolver, em parceria com o grupo-pesquisador. Sebeok e Umiker-Sebeok (1991, p. 23) afirmam que a abdução gera um tipo de emoção que a coloca à parte da dedução e da indução. O desafio cognitivo toma a forma de uma emoção na nossa relação com o que chamamos de mundo e na nossa crença nas formas desse mundo. Será que essa emoção é a mesma que encontramos no nosso relacionamento com os sujeitos de nossas pesquisas, que pertencem a mundos cognitivos não homogêneos com o nosso? Sem a abdução não existiria a própria vida, acrescentam Sebeok e Umiker-Sebeok. É um instinto que percebe as conexões inconscientes do mundo, é a comunicação subliminar de mensagens.

Eles referem-se diretamente a Peirce (1935-1966, par. 2.643). Essa citação é muito esclarecedora e merece ser reproduzida in extenso, pois dá uma sustentação teórica ao nosso método sociopoético de pesquisa:

A hipótese substitui uma concepção simples por um complexo emaranhado de predicados vinculados a um sujeito. Mas, há uma sensação peculiar pertencente ao ato de pensar que cada um desses predicados impregna no sujeito. Na inferência hipotética, esse sentimento complexo, assim produzido, é substituído por um sentimento simples de maior intensidade, aquele que pertence ao ato de pensar a conclusão hipotética5. Agora, quando nosso sistema nervoso é excitado de uma maneira complexa, havendo uma relação entre os elementos da excitação, o resultado é um distúrbio harmônico singular, o qual eu chamo de emoção. Deste modo, os vários sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o resultado é uma emoção musical peculiar, inteiramente distinta dos próprios sons. Essa emoção é, essencialmente, o mesmo que uma inferência hipotética, e qualquer inferência hipotética implica a formação de uma tal emoção. Podemos dizer, portanto, que a hipótese produz o elemento sensual dopensamento e a indução o elemento habitual. (grifos do original)

O segredo de nossas pesquisas?

A metáfora é intimamente ligada ao processo de raciocínio abdutivo: ela cria elos entre áreas heterogêneas da realidade; através desses elos passam emoções e sensualidade. Geralmente, esses elementos estão explicitamente agindo nas pesquisas qualitativas, mas temos dificuldades em analisá-los.

É possível afirmar que para nós, pesquisadores em educação, a metáfora é a via real em direção ao implícito da vida cognitiva dos sujeitos de nossas pesquisas e à compreensão da nossa relação com esses sujeitos. Somos principalmente caçadores de metáforas, na fala e nos silêncios de nossos parceiros em pesquisas. Isso, segundo dois eixos: as metáforas tornam problemático um dado da experiência social e educacional que parecia óbvio; além disso, elas favorecem a abdução, sem a qual não há descobertas científicas, como afirma Peirce. Ricoeur (1975, p. 321) fala de veemência ontológica, e podemos falar de energização do agenciamento coletivo de enunciação. Na página 291, Ricoeur sintetiza esses aspectos, ao escrever: "A excelência estética é uma excelência cognitiva".

A metáfora liga arte e ciência, pois a invenção por aproximação de estruturas heterogêneas é a base de potentesefeitos de verdade em várias áreas da prática social.

Será que sem metáforas não há pesquisa, logo, nenhuma descoberta?

É só ampliar essa visão da força metafórica da língua comum, falada por pessoas comuns, para se perguntar se, finalmente, existe uma referência última, realista, que seria como o solo do núcleo comum a todas as representações, e então responder, obviamente, que não. As metáforas ecoam umas às outras, pois nenhum sentido, nas enunciações cotidianas, existe sem ter conexões com referências múltiplas, dimensões heterogêneas da vida social (componente generativa). Nessa rede de ecos nascem metáforas vivas (componentediagramático). O saber mais abstrato possui ligações recíprocas com afetos e emoções (componente maquínico).

Assim deve a pesquisa qualitativa visar explicitamente às interferências, ou seja, às denotações co-presentes (mesmo que geralmente heterogêneas) na experiência de cada um (componente transformacional), enquanto essa experiência possui um sentido que a pessoa pode expressar. Isso relaciona a metáfora com as formas hipercodificada e hipocodificada da abdução segundo Peirce, pois tanto a reconstrução do contexto como a crença na regularidade do mundo acontecem em referências interligadas, na mente de cada sujeito da pesquisa.

A metáfora é o vínculo privilegiado que transporta os sentidos da vida cotidiana de um mundo semântico para um outro, participando da co-construção de agenciamentos coletivos de enunciação. É a experiência prática da vida, base da criatividade popular, como mostrou com força Certeau (1980). Acontece também esse tipo de construção quando desenvolvemos uma pesquisa científica. Isso nos dá a responsabilidade de estarmos atentos a todas as formas de abdução virtualmente contidas nas metáforas, ou seja, hiper e hipocodificada, criativa e meta-abdutiva.

A sociopoética

Daí surge a idéia de inventar um dispositivo de pesquisa que favoreça a investigação das relações entre os sujeitos da pesquisa, das interferências ou inter-referências constitutivas da intencionalidade de se dar um mundo comum e de criar, por metáforas, um mundo poético por certo heterogêneo, mas compartilhado, no próprio processo de pesquisa. O grupo-sujeito, segundo Sartre (1960), origem filosófica dos grupos donos do processo de pesquisa-ação no sentido de Barbier (1998), próximo do círculo de cultura segundo Paulo Freire (Freire, 1987), pode ser chamado de grupo-pesquisador, numa concepção da pesquisa qualitativa que focaliza a pesquisa como processo, ou seja, como ela transforma o meio onde acontece, enfatizando as perguntas seguintes: Quais os efeitos produzidos pelo processo de pesquisa entre os sujeitos?; Quais, entre seus conhecimentos plurais (seus enunciados)? Outra pergunta: Quais os efeitos produzidos entre seus conhecimentos de um lado, e seus afetos, de outro lado? Ou melhor, por que as coisas não são separadas assim, para quem trabalha com máquinas enunciativas: O que acontece no entre-dois do saber e do sentir? Isso, no grupo inteiro, que inclui o pesquisador acadêmico chamado de facilitador da pesquisa. De fato, uma pesquisa sociopoética é uma auto-análise coletiva, facilitada por pessoas praticando dispositivos e técnicas apropriados.

O grupo-pesquisador

Para responder a esse tipo de pergunta, e também poder observar afetos e saberes no estado nascente, ou seja, emergentes, é preciso constituir um grupo-pesquisador, responsável pelo desenvolvimento do processo de pesquisa, pois assim interagem afetos desindividualizados e vão criando-se figuras novas e emergentes a partir dos conhecimentos presentes no grupo. Essa instituição dos sujeitos da pesquisa em grupo-pesquisador é o primeiro princípio da sociopoética.

As culturas dominantes e de resistência

O segundo princípio da sociopoética, considerando a dialética que se vai instituindo entre o pesquisador acadêmico e os demais membros do grupo-pesquisador chamados de co-pesquisadores, é, logicamente, o princípio da valorização das culturas dominadas e de resistência na produção e leitura dos dados. Com efeito, por razões que podem ser de recalcamento por causa de repressão e sofrimento (opressão dos corpos e das mentes) ou de culto dado ao segredo, ao silêncio e ao corpo (culturas negras e indígenas), a leitura clara do que é dito e não-dito nas metáforas, do que elas estão visando, intuindo e ignorando, não é possível pelas meras armas teóricas do racionalismo. É necessário a ajuda de fontes de leitura mais intuitivas, sensíveis e até simbólicas, para que se entenda a complexa riqueza das imagens metafóricas. Já se cria a metáfora na interseção de mundos com apalavramentos e acertos (segundo a expressão de Sodré, 1999) heterogêneos.6 É impossível deixar se perder essa riqueza intercultural que percorre o mundo semântico brasileiro: as referências negras e indígenas possuem essa força cognitiva ímpar de relacionarem-se diretamente com o que Julia Kristeva chama deelemento semiótico pulsional e corporal, ou seja, com o componente propriamente maquínico da duplagem entre os agenciamentos maquínicos de corpos e afetos e os agenciamentos coletivos de enunciação, o componente mais complexo e sensível a devires transformadores.

Conhecer com o corpo inteiro

O terceiro princípio da sociopoética é conhecer com o corpo inteiro: a emoção, as sensações, a intuição, a gestualidade, a imaginação… e não apenas com a razão. Ele vem de práticas sociais dominadas no mundo intelectual de hoje: de enfermeiros que mexem com os corpos doentes e aprendem, na sua prática, a conhecer com o corpo inteiro; de pesquisadores em educação popular que encontram corpos dançando, cantando, rodando, festejando apesar de marcados pelo açoite físico ou moral. De vários componentes populares da sociedade brasileira, principalmente de origem africana e indígena. Muitas vezes, a pele, os nervos, os músculos, as pernas, o útero, a ginga… sabem o que o cérebro esquerdo ainda não sabe simbolizar. Varela, Thompson e Rosch (1993) nos lembram que a forma mais relevante de conhecer, origem de outras formas mais descontextualizadas, é conhecer pela prática, resolvendo problemas vitais que mobilizam o corpo inteiro, com todas as suas faculdades de adaptação e criação (gestualidade, sentidos, categorização, imaginação, emoção, criação de conceitos, intuição…). Muitos especialistas das ciências contemporâneas concordam em afirmar que o relevante é entender e compreender como são produzidos os conhecimentos, isso influenciando o quê (o conteúdo, o significado) dos conhecimentos produzidos.7

Técnicas artísticas de produção de dados

Obviamente, é muito mais fácil estudar metáforas quando se usam técnicas de pesquisa favorecendo um processo de metaforização da experiência pelos próprios sujeitos da pesquisa. Isso constitui o quarto princípio da sociopoética. Precisamos, no mundo da pesquisa qualitativa, de várias técnicas artísticas de produção de dados. Como existe uma arte-educação, existe igualmente uma arte-pesquisa. Colocar o grupo-sujeito da pesquisa numa posição criadora permite ganhar em dois terrenos: em primeiro lugar, no levantamento dos preconceitos e elementos ideológicos instituídos que envenenam a vida intelectual (inclusive a vida dos pesquisadores acadêmicos, que aprendem dos demais membros do grupo-pesquisador a olharem suas costas, sua sombra preconceituosa, ou seja, o que ficou não-analisável antes do encontro com os parceiros de pesquisa); em segundo lugar, na observação (na presença atenta, diz o zen-budismo, segundo Varela, Thompson e Rosch, 1993) do modo de as imagens e metáforas novas, criadas na interação, emergirem aqui e agora, e dos ambíguos ou dialéticos significados que se vão tecendo e torcendo no grupo-pesquisador.

Luís Vítor Castro Júnior, Maria Geovanda Batista e Jacques Gauthier (2003) expressam isso ao apontarem a etimologia da palavra ilusão, através do latim il-ludere, que inclui o brincar. Maria Geovanda Batista foi facilitadora, com a ajuda de mulheres idosas Pataxó, de uma pesquisa sociopoética sobre os sentidos do brincar no mundo do povo indígena Pataxó. Os referidos autores escrevem:

Com o grupo-pesquisador Pataxó, a atividade ritual-lúdica está sendo traçada como mussaraitáua - brinquedo nopidjin caboclo, que significa etimologicamente lugar-de-esquecer. Esquecer o inútil, aquilo que impede a presença imediata, a intuição. Outra construção no plano, que se contrapõe à visão do ritual como droga, ópio do povo(Marx), ilusão (da raiz latina il-ludere, brincar em) vital da força de vida (Nietzsche), já enganada pelos Portugueses procurando os habitantes das Índias ou, mais provavelmente, a terra da redenção. Ao rizomatizarmos com sua própria cultura, suas memórias e com a imaginação mito-poética, fomos evidenciando uma nova compreensão do brincar, porque todos os Índios brincam. E brincam juntos, crianças, jovens, adultos e velhos, participam dos jogos de uma maneira complementar, cooperativa e muito semelhante. Do mesmo modo, como é semelhante, a participação das crianças no trabalho coletivo, na produção artística e em tudo que diz respeito à produção deste brincar. (no prelo)

Vê-se nesse exemplo como a metáfora do brincar como lugar-de-esquecer, consolidada na língua, é como uma imagem dialética, que condensa tanto a tradição ancestral e a história como a abertura para devires inesperadose desejados, por serem o modo coletivo de se intuirem conhecimentos, até mesmo pela busca iniciática do transe.

O sentido da pesquisa

O quinto e último princípio da sociopoética diz respeito à responsabilidade do grupo-pesquisador na socialização dos resultados e na interrogação do sentido social, político, ético, espiritual da pesquisa. Nada de moralista nisso, podendo a pesquisa ser, com proveito em termos de produção de conhecimentos, correta ou perversa: isso depende dos desejos do grupo-pesquisador.

A metáfora viva e o confeto em pesquisas sociopoéticas

No quadro limitado deste artigo, quero dar somente o exemplo de uma técnica artística (no caso, poética) favorecendo a visibilidade de metáforas, mortas ou vivas, instituídas na língua ou que emergem no seio do grupo-pesquisador, ou seja, provar aos leitores que nossa discussão teórica tem efeitos práticos interessantes para nós e nossos orientandos.

Numa pesquisa apoiada pelo CNPq, realizada com três grupos-pesquisadores de uma escola comunitária de Salvador (BA), de crianças, de educadoras e de pais e mães, colocamos, após realização de um relaxamento tendo por objetivo um menor controle racional sobre a fluidez das imagens que surgem, as seguintes perguntas:

Se as coisas mais importantes que você aprendeu, na vida, na escola, na família, na rua, fossem uma Terra, como seria essa terra? Após vinte segundos: Se fosse um Túnel, como seria esse túnel?… Se fosse um Caminho?… Um Labirinto?… Um Arco-íris?… Uma Ponte?… Uma Gruta?… Uma Galáxia? (Gauthier, 1999b)

As crianças desenham e, numa outra sessão de pesquisa, comentam seus desenhos em relação ao conceito de aprendizagem. Essa técnica é chamada de técnica dos lugares geomíticos. O objetivo da pesquisa era comparar as aprendizagens e os saberes mais significativos para os três grupos-pesquisadores, o que interessava muito à própria escola comunitária que estava num processo de avaliação de seu trabalho educativo. Rapidamente a pesquisa se tornou uma pesquisa intercultural, por causa da freqüência da associação das imagens vistas pelos co-pesquisadores com temas culturalmente marcados no mundo afro-brasileiro baiano.

A técnica é explicitamente indutora de metáforas. Selecionando algumas metáforas particularmente vivas e problematizadoras da vida cognitiva das crianças, temos, no lugar Labirinto, as falas seguintes, comentários dos seus desenhos pelas crianças (Gauthier, 1999b, p. 317):

Apostando correndo sozinha, a menina muito alegre foi ajudada pelos bichos [em outros lugares muito perigosos, podendo comer a menina] a matar um ser humano (Esta menina é abusada, ela se chama Carla Perez, comenta M., a autora da imagem);

[...] uma princesa desmaiou de fome e sede, procurando uma saída, conforme uma estória lida pela autora da imagem, I., que gosta muito de estórias de princesas. Opostos a isso, os deveres chatos quando se repetem;

Na aula de arte misturamos as cores, como aconteceu no passeio que fizemos e que serviu de quadro para a prova de biologia (e chegou a pergunta: De que cor são os anjos?);

Existem saberes nos quais é melhor não entrar, por medo de não poder sair, como o saber das drogas, ou como quando, frente à criança curiosa, os adultos (pai ou professora) se contradizem, ou não dão explicações satisfatórias, ou praticam avaliações arbitrárias.

Cruzando essas metáforas com outras oriundas de outros lugares geomíticos, os facilitadores puderam propor para contra-análise, ou seja, avaliação pelas crianças e discussão problematizadora, uma forma de pensamento metafórico do grupo-pesquisador inteiro (o que Ricoeur chama de verdade metafórica). Esse pensamento é constituído de seres intermediários entre o afeto e o conceito, que chamamos na sociopoética de confetos. Por exemplo, a solidariedade cognitiva pode minimizar certos perigos. A arte possui também esse poder: no Arco-íris, ela assume uma parte de morte, ódio e mau-olhado. Sem a arte, a gente mataria, parecem afirmar as crianças. Aqui, arte e solidariedade cognitiva são confetos.

No método sociopoético, é solicitado aos co-pesquisadores pensarem com base nessa conclusão aberta. Essa reflexão pode gerar transformações pessoais ou institucionais, ou não. O grupo-pesquisador produziu seu próprio questionamento e os facilitadores não pretendem induzir respostas ou mudanças. Essas dependem do grupo hóspede da pesquisa e do desejo de cada ator co-pesquisador.

Conclusão: a questão da interpretação e da conceitualização

Existe um importante trabalho dos filósofos, em duas direções: seja para darem vida às metáforas, ao ouvirem o que está subliminarmente cantando na linguagem e encantando-o, seja para criticarem o que a metáfora carrega de não analisado no conceito e apurá-lo desses elementos meio afetivos, intuitivos e confusos. Aliás, geralmente os filósofos trabalham nas duas direções, pois se trabalhassem somente na primeira eles seriam poetas, e se trabalhassem somente na segunda sem vida seria a sua língua filosófica, cortada da criatividade da linguagem cotidiana.

Interpretar é um processo que acontece entre tirar a máscara da metáfora e respeitar seu segredo. Apesar de suas orientações filosóficas muito diferentes, tanto Deleuze e Guattari (1991) como Ricoeur (1975) insistem para que se diferencie o mundo do conceito filosófico do mundo do afeto e da metáfora: não se pode confundir o plano de imanência,onde nascem os problemas e seus afetos próprios, com o plano de consistência,onde insisteme interligam-se os conceitos, para Deleuze e Guattari; nem omundo da metáfora, vida da língua que ignora a separação entre emoção e cognição, com o mundo do conceito, pensamento especulativo que possui seu próprio regime discursivo, para Ricoeur.

Como vemos, a sociopoética favorece a criação de confetos. Mas, como pesquisadores, precisamos igualmente de conceitos distanciados das cores, dos toques, dos cheiros, dos sons e dos gostos violentos e doces, maravilhosos e vergonhosos que constituem, para nós, o sentido da vida, metáfora gigantesca, sublime e terrível. Kant, no parágrafo 49 da sua terceira Crítica (1987, p. 144), expressa essa idéia com gênio, ao mostrar que a apresentação da Idéia pela imaginação obriga o pensamento conceitual a pensar mais: "Ao ampliar esteticamente o próprio conceito de maneira ilimitada, a imaginação torna-se criadora e coloca em movimento a faculdade das Idéias intelectuais (a razão)". Isso, acrescenta Kant, "[...] a fim de pensar, na oportunidade de uma representação […] muito mais que aquilo que pode ser entendido nela e claramente concebido". E Ricoeur completa (1975, p.383): "[...] toda interpretação visa a reinscrever o esboço semântico desenhado pela enunciação metafórica num horizonte de compreensão disponível e conceitualmente dominável".

Assim, assume a sociopoética o desafio da tradução outra forma de transporte, diferente da metáfora dosconfetos em conceitos. Isso é o momento que Deleuze e Guattari chamam de desterritorialização, sendo o conceito caracterizado pelas suas potências de fugir de todo quadro de produção (sócio-histórico) dado e de entrar em combinações intensivas com outros conceitos. O conceito vai variar, intensificar, combinar, criando as condições dos problemas identificados (Deleuze & Guattari, 1991, p. 26-28). Os conceitos são: "centros de vibrações, cada um em si e uns em relação aos outros".

Do lado de Ricoeur, o conceito vai entrar em diálogo com outras criações filosóficas, radicalmente distanciadas da experiência. Na língua de Deleuze e Guattari, um conceito vai ser experimentado,8 na língua de Ricoeur,interpretado. Nos dois casos, ele vai ganhar sua autonomia em relação a seu contexto de emergência.

A sociopoética pretende atender a essa exigência, pela análise do pensamento do grupo-pesquisador como se o grupo fosse um filósofo só, criador de conceitos. Aí o grupo-pesquisador precisa da ajuda do facilitador da pesquisa, que tranqüilamente, em casa, vai se perguntar: Como esse grupo estrutura o mundo que ele vai construindo através da pesquisa? Primeiro, quais as linhas de separação ou exclusão que ele traça, nas palavras usadas por ele para dizer sua experiência em relação ao tema orientador da pesquisa? (momento das análises classificatórias). Segundo, quais as ligações secretas que ele estabelece entre vários planos dessa experiência?(momento do estudo transversal).9

Esse trabalho é difícil, mas permite a elaboração de conceitos desterritorializados, que não são mais misturados com afetos, que o grupo vai, em seguida, discutir, criticar, avaliar e experimentar, conforme nossa concepção peirceana da conclusão hipotética. Pode ser um conceito inovador da prática educacional, nunca pensado antes da pesquisa, ou mais humildemente, um conceito desterritorializado nas margens dessa prática, mas que pode trazer amplas mudanças na instituição, por causa de sua potência intensiva, ou de variação, ou de ligação, ou de contaminação. Um único conceito criado e exposto com alegria vale um doutorado inteiro, e não anula as intensidades vivenciadas com os atores da pesquisa. Pelo contrário, ele potencializa essas intensidades, ao voar como uma águia, ou um gavião, gritando seu ritornelo.

Darei somente um exemplo de tal conceito co-criado pelo grupo-pesquisador de crianças da Escola Comunitária Luiza Mahim em Salvador, em colaboração com os facilitadores da referida pesquisa financiada pelo CNPq, que pesquisaram as estruturas implícitas do pensamento do grupo-pesquisador.10

É o conceito mesmo de aprendizagem, assim definido: é um momento na busca da sabedoria da vida, que acontece por um processo mais global de cuidar do outro, de sonhar com ele, em que a beleza, a sede de justiça e a solidariedade têm um papel determinante. Paz, proteção e firmeza, segurança e autolegitimação são buscadas na conquista dos saberes, apesar de as crianças desconfiarem das provas e das lógicas instituídas. Vivenciando processos de lento amadurecimento, elas buscam a ancestralidade e suas raízes, criando ludicamente e pela arte sua própria potência-no-saber, diferente da potência do outro, como seres aprendentes. Experimentam com paixão na busca do saber. Parasitando, até, outros saberes, as crianças não ignoram a empatia e a intuição como fontes de aprendizagem. Procurando o respeito mútuo, elas alteram-se e conseguem, às vezes, traduzir os saberes uns em outros, tentando iniciar sua entrada num espaço novo, o espaço do conhecimento, com regras próprias. Sua paixão está dirigida contra a fragmentação do saber e contra a exclusão, pelos saberes academicamente legítimos, da sabedoria da vida.

Vemos aqui funcionar um conceito deleuziano, como centro de vibrações e variações, intensidade desterritorializada, que se combina em rede com outros conceitos. Obviamente, esse resultado não é independente do projeto político-pedagógico da escola, que os alunos conhecem. Sem dúvida, os comentários dos jovens co-pesquisadores sobre suas produções metafóricas não são totalmente livres dessa pressão institucional implícita.

Mas nunca podíamos prever, antes de realizarmos essa pesquisa, ou seja, esse tipo de pesquisa metaforizante, o grande peso das tradições africana e indígena no modo de aprender das crianças, cuidando do outro e procurando a sabedoria da vida. O que teríamos encontrado se tivéssemos somente utilizado técnicas de entrevista, sem termos tentado revelar parte do inconsciente institucional pela mediação da metaforização artística e sem termos analisado o pensamento do grupo-pesquisador como um todo, como se esse grupo-sujeito de crianças fosse um filósofo individual?

Provavelmente, resultados mais previsíveis, já presentes na consciência e na razão das pessoas.

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Recebido em agosto de 2003
Aprovado em novembro de 2003

JACQUES ZANIDÊ GAUTHIER, doutor em ciências da educação pela Universidade de Paris VIII, é professor de filosofia no Lycée de Muret, da Académie de Toulouse. Dentre suas publicações mais importantes, organizou GAUTHIER, Jacques, CABRAL, Ivone, SANTOS, Iraci, TAVARES, Cláudia M. Pesquisa em enfermagem:novas metodologias aplicadas (Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1998); GAUTHIER, Jacques, FLEURI, Reinaldo M., GRANDO, Beleni S. Uma pesquisa sociopoética: o índio, o negro e o branco no imaginário de pesquisadores da área de educação (Florianópolis: Núcleo de Publicações da UFSC, 2001); e publicou: GAUTHIER, Jacques e GAUTHIER, Leliana de Sousa. Le rapport au savoir comparé d'élèves, de parents et d'enseignants d'écoles de périphérie à Salvador de Bahia (Brésil): étude sociopoétique. In: CHARLOT, Bernard (org.). Les jeunes et le savoir:perspectives internationales (Paris: Anthropos/Economica, 2001). Pesquisa em desenvolvimento: A relação com o saber de alunos, professores e pais de uma escola comunitária francesa (La Prairie, Toulouse). E-mail:socpoet@wanadoo.fr
1 Em francês, bassins de capture é um conceito oriundo da teoria das catástrofes, atribuída ao matemático René Thom. Pode ser traduzido também como atratores, em referência à física do caos.
2 Aqui encontramos um problema de definições: Benveniste (1966) chama de semântica a constituição do sentido ao nível lógico da frase, por oposição à semiótica, concebida ao nível do signo. Isso permite a problematização da intencionalidade e do implícito e abre caminhos para as futuras análises de discurso. Já Kristeva (1969) chama desemiótica a constituição do sentido a partir das pulsões, da ordem e desordem do corpo, cuja linguagem pré-semântica participa da elaboração inconsciente do sentido político da práxis.
3 Vygotski (1985) criou o conceito de zona de desenvolvimento proximal a partir da relação dialética entre o nível de desenvolvimento potencial e o nível de desenvolvimento real. Essa zona borda a trajetória que o sujeito percorre para desenvolver níveis de amadurecimento das estruturas simples a partir de estruturas complexas que ele ainda não conquistou de forma independente, mas que, com a ajuda do outro, ele consegue atualizar.
4 A questão da abdução na semiótica de Peirce é tratada sob múltiplos aspectos por vários autores. Ver Eco e Sebeok (orgs.), 1991.
5 Essa noção de conclusão hipotética é de fundamental importância nas pesquisas qualitativas. Na sociopoética, os facilitadores de pesquisa podem somente concluir hipoteticamente. Eles vivem potentes emoções na sua relação com os demais membros do grupo-pesquisador. A devolução dessas hipóteses para o grupo permite, ao mesmo tempo, uma negociação dialógica dos resultados da pesquisa e o distanciamento de cada um de suas implicações emocionais e cognitivas no tema-gerador da pesquisa.
6 O apalavramento é uma raiz, um rizoma discursivo plantado numa terra sociocultural que liga o sujeito enunciativo a uma comunidade por uma promessa e uma fidelidade. O acerto é o processo de negociação que liga o sujeito, coletivo ou individual, a sujeitos ou comunidades de fora. Apalavramento e acerto são de fundamental importância nas comunidades afro-brasileiras e permitem definir o conceito de comunalidade como "ligado a um conjunto de redes de alianças comunitárias que instituem formas de expansão e afirmação existencial de umcontinuum civilizatório" (Santos, 2001, p. 37).
7 Essa problemática percorre a obra de Michel Serres, particularmente os cinco volumes de Hermes (1969, 1972, 1974, 1977 e 1980). Sobre a questão do corpo, citaremos Serres (1985).
8 "Um conceito exige […] uma encruzilhada de problemas, onde ele se alia com outros conceitos co-existentes" (Deleuze & Guattari, 1991, p. 24). E, na página 25: "O conceito de um pássaro não se encontra na sua espécie mas na composição de suas posturas, cores e cantos". E ainda, página 26: "O conceito diz o evento, não a essência ou a coisa".
9 O processo de produção de metáforas vivas é particularmente solicitado, na sociopoética, no momento surreal, quando se pede aos co-pesquisadores para criarem novas imagens, oriundas dos encontros inesperados que aconteceram durante esses estudos classificatórios e transversais.
10 Ver uma apresentação dessa pesquisa em Gauthier e Gauthier, 2001, p. 69-89.