O que é pesquisar – Entre Deleuze-Guattari e o candomblé, pensando mito, ciência, arte eculturas de resistência
Jacques Gauthier*
RESUMO: A ciência atual é uma ciência do evento e do acontecimento. Explorando, após Deleuze, a diferença entreevento e acontecimento na filosofia estóica, o autor caracteriza vários modos de "fazer ciência": a dupla captura, referida, numa visão transcultural, à divindade Ogum do candomblé; a maturação escura, referida à divindade Ossãe etc. Daí são discutidos, com base em Spinoza, a questão do local e do universal na construção do conhecimento, e com base em Michel Serres, o problema da articulação entre mito e ciência. A pesquisa de Graziela Rodrigues, "Bailarino-pesquisador-intérprete: Processo de formação", é tomada como exemplo de abordagem inovadora, transcultural e sociopoética. Uma pergunta conclui este artigo: será que a descolonização dos espíritos (e dos corpos) passa pela criação de uma episteme transcultural?
Palavras-chave: Teoria da pesquisa, sociopoética, transculturalidade, mito, ciência
Algumas duplas capturas
Ao refletir sobre a ciência atual, Gilles Deleuze, numa obra que pode ser considerada como uma explicação (ex-plicação, desdobramento) dos grandes conceitos criados em parceria com Félix Guattari: Diálogos (Deleuze e Parnet 1996), aponta que a física, a matemática, a biologia e as ciências sociais trabalham cada vez mais sobre "estados de corpos", sobre "agenciamentos heterogêneos", sobre "inter-reinos" (animal, vegetal, mineral). O exemplo que Deleuze gosta de tomar é o da abelha e da orquídea, agenciamento de corpos que cria uma máquina única, através de uma dupla captura, do bicho pela flor e da flor pelo bicho. O modelo de cientificidade não é mais a axiomática nem a estrutura (na busca de formas que tornem homogêneos e homólogos os elementos variáveis), mas sim o acontecimento ou evento, singular, incorporal, que tem sua efetuação em corpos ou estados de corpos: "Não tira-se mais uma estrutura comum de elementos quaisquer, espalha-se um evento, contra-efetua-se um acontecimento que corta diferentes corpos e efetua-se em diversas estruturas" (Deleuze e Parnet 1996, p. 82).
Pesquisar é criar devires, exprimir o virtual incluído em uma situação, lançar multiplicidades que não podem ser presas nas grandes máquinas estatais, geralmente binárias (tais como homem-mulher, branco-negro, adulto-criança etc.). Nas ciências humanas e da sociedade desenvolvem-se pesquisas estudando o singular, tais como as pesquisas etnometodológicas e interacionistas, socioanalíticas e sociopoéticas, etnocenológicas e ritualísticas. Uma área do conhecimento é criada, aos poucos, na qual são teorizados os dados produzidos pelos grupos-sujeitos das pesquisas, sendo estes dados criaçõessingulares, quase artísticas, inesperadas e imprevisíveis, dos sujeitos pesquisados. Muitas vezes, os pesquisados tornam-se pesquisadores ao participar da leitura, da análise, da experimentação e da teorização dos dados que produziram.
É interessante, aí, lembrar que o grande teórico da singularidade, Spinoza (e seria bom ler Leibniz também com esta preocupação), pensava o objeto de conhecimento segundo dois eixos: a integração na unidade do ser e a disseminação. A integração foi glorificada pelas narrativas racionalistas e estruturalistas, pois ela relaciona a complexidade caótica do que ocorre com a substância universal, Deus, isto é, a Natureza. Os cientistas encontravam, nessa leitura homogeneizante, as suas próprias preocupações em submeter a variedade à lei geral, as variações ao tema, a flexão ao radical. Por manter o caráter irredutível da diferença na singularidade, o segundo eixo foi desprezado: poucos cientistas reconheciam seu fazer científico na filosofia da diferença. Só a partir dos desenvolvimentos científicos do século XX tornou-se possível uma leitura que começasse pela descrição das dimensões da singularidade, e seguisse, passo a passo, seu devir imprevisível pela razão humana – nem sempre "suficiente"! Um exemplo é a Teoria das Catástrofes do matemático René Thom (1977), bem como a Transformação do Padeiro e as Teorias do Caos (ver Prigogine e Stengers 1988). Ao pensar numa vertente bem diferente do pensamento, não é por acaso que se reavalia hoje o empirismo, tão desprezado pela tradição racionalista: os empiristas exercitam sua consciência crítica sobre as teorias, consideradas como narrativas, cujo sentido se encontra, também, nas encruzilhadas entre o imaginário humano e os objetos sensíveis. O racionalismo clássico não foi suficientemente atento à dimensão imaginária da experiência e da prática científica, nem à singularidade dos objetos que ele pretendia transformar em objetos de conhecimento. As singularidades nos obrigam, por causa dos seus devires nunca contemplados nos discursos instituídos, a ser atentos à poiesis da natureza e da vida social, a seu poder de autocriação e às implicações do nosso olhar chamado de científico, nesse processo de criação.
Por exemplo, criar um devir, na linguagem, é criar um estilo singular, falar a sua própria língua como um estrangeiro. Essa produção realiza-se, segundo Deleuze e Guattari (1980), por uma máquina de guerra nômade, totalmente diferente dos exércitos estatais. A máquina de guerra procede por duplas capturas. Na área da educação, sem a captura recíproca dos procedimentos acadêmicos de pesquisa e de práticas e conhecimentos de pais, alunos, comunidades, nenhum conhecimento novo pode acontecer. A captura não é pacífica. Não é uma síntese. É a criação, difícil, de "outra coisa", onde estão conectados corpos, idéias, energias habitualmente soltas. É a criação de novas intensidades, que geram novos conceitos. Esse processo é chamado de "desterritorialização". No exemplo tomado são desterritorializados tanto a pesquisa acadêmica (o "saber" em educação) como os pais, os alunos e as comunidades. Isto é o que Deleuze e Guattari (op. cit., p. 34) chamam fazer rizoma:
Existem linhas que não podem ser resumidas em trajetórias de um ponto e que fogem da estrutura, linhas de fuga, devires, sem futuro nem passado, sem memória, que resistem à máquina binária, devir-mulher que nem é homem nem é mulher, devir-animal que nem é bicho nem homem. Evoluções não paralelas, que não procedem por diferenciações, mas que pulam de uma linha para outra, entre seres totalmente heterogêneos; fissuras, rupturas imperceptíveis, que quebram as linhas, mesmo se retomam em outro lugar, pulando por cima dos cortes significantes… é tudo isso o rizoma.
Para tomar um outro exemplo, bem conhecido: a etnometodologia teve um dos seus inícios no encontro entre o pesquisador Garfinkel e Agnes, pessoa que queria mudar de sexo anatômico. Do encontro entre os dois nasceram linhas de fuga altamente criadoras em termos de conhecimento. A dupla captura Agnes-Garfinkel produziu um saber instituinte sobre os métodos utilizados pelos médicos, pelo pessoal de enfermagem, pela comunidade acadêmica, pelas famílias… por vários territórios – inclusive o corpo de Agnes, que escolheu consertar o erro da natureza que colocou para ela, mulher, um órgão viril – para dar uma existência social e significação ao gênero.1
A máquina de guerra nômade cria uma nova circulação de afetos, expõe o virtual presente no atual, gera saberes inesperados. A dificuldade é que esses saberes passam como fluxos, não são identificáveis segundo os hábitos acadêmicos de pensamento. Eles não têm uma identidade. Não se trata, aí, da produção de uma nova identidade, muito pelo contrário. São criadas novas intensidades, sim, às vezes evanescentes (como os quarks na física atômica), às vezes duráveis. Uma conseqüência muito importante é que a pesquisa em ciências humanas e sociais desenhará mapas de intensidades, e de jeito nenhum, mapas, carteiras de identidades.
O acontecimento, o evento e alguns orixás
Em coerência com Deleuze e Guattari vou experimentar a seguinte máquina de dupla captura: de um lado, a própria intensidade Deleuze-Guattari, intensidade múltipla, sobretudo, não dual. De outro lado, o candomblé, agenciamento complexo de corpos e discursos. No centro, ou melhor, em todos os lugares, o conceito filosófico expresso por Deleuze e Guattari através da palavra francesa évènement. Ora, a língua portuguesa tem duas palavras quando a francesa tem somente uma: "evento" e "acontecimento". Reflitamos sobre a diferença entre "evento" e "acontecimento": Acontecimento vem de "acontecer", do que está tecido junto. Evento vem do que "e-veio", do que está indo para fora; do que está surgindo, como o vento.
Em referência à filosofia estóica, apesar da dificuldade da língua francesa que ignora essas diferenças, Gilles Deleuze (1969) caminhou rumo a uma compreensão da polissemia da palavra évènement. O estoicismo coloca do lado do acontecimento o que exprime, aqui e agora, a necessidade universal, o destino. O acontecimento é sempre necessário (daí, lamentar-se e esperar não têm nenhum sentido); ele é sempre singular, diferente de um acontecimento outro ("comer" não é "nadar" nem "falar"); ele é sempre complexo ("comer" aqui e agora não é comer amanhã, ontem ou em outro lugar: o gosto é diferente, a luz, o ambiente, os outros…). O atual, o estado ou fazer atual, é o ponto para onde convergem todas as características necessárias da situação: eu estou comendo tal comida em tal companhia e tal ambiente…
O evento é o incorporal que intensifica e contra-efetua o acontecimento. Podemos exprimi-lo assim: "o comer". O evento é o infinitivo. Existe, aqui e agora, "o comer". Você veio até esta comida, pouco importa se foi de ônibus, a pé, voando, você veio: "o vir". Destaca-se uma linha abstrata, "o vir", "o comer", "o falar", "o nadar", "o cair", "o estar". Nunca o Ser, nunca o Eu. Nem maiúsculos, nem substâncias, nem sujeitos. Processos, estados, devires. O evento liga diretamente o atual com o virtual. Você passou por um "vir"? Você está atravessado por um "comer". Aí existe um "falar" virtual, ou um "cair" da sua cadeira, ou um "sambar". O evento abre para uma multiplicidade de devires outros. É só falar.
O desejo vai e vem entre evento e acontecimento. É só isso, o desejo. Desculpe, uma intuição passou.
Ao ler Deleuze e Guattari surgiu a imagem de Dionísio. O evento Deleuze-Guattari, a filosofia do desmembramento. Mas esquecemos que Dionísio significa: "Aquele que nasceu duas vezes". Sim, depois do seu desmembramento, seu coração foi comido por Perséfone, filha de Deméter (a Deusa-terra) e esposa de Hades (o Deus dos Infernos), aquela moça bonita e misteriosa que passa seis meses com a mãe, no verão, e seis meses com o marido, no inverno nosso. E Dionísio nasceu uma segunda vez, de Perséfone. Daí surgiu uma idéia: falta à filosofia francesa contemporânea a figura feminina da fecundidade da escuridão, do lento trabalho de maturação, do segredo da lama em que começaram as coisas, figura mítica que o candomblé conhece sob o nome de Nanã Buruku.2
Relendo Deleuze e Guattari pareceu-me relevante a captura dessa intensidade pelo candomblé. Na terra baiana que escolhi como território, na nação Angola que foi escolhida através de mim, os orixás do candomblé são miticamente mais relevantes para pensar que os deuses da antigüidade grega. Assumindo essa dupla escolha, aponto que o desmembramento é um efeito da singularidade-Exu,3 assim como as ligações novas, instituintes.
Gilles Deleuze, provavelmente, era filho de Ogum, orixá guerreiro, patrono do ferro e da tecnologia ("tem a função de assiwaju, aquele que toma a frente" – acrescentam Sodré e Lima 1996). Oxóssi, irmão dos dois precedentes (ou filho de Ogum em algumas versões), orixá caçador, habitante das matas, patrono da nação nagô-kêtu, rege igualmente a intensidade-Deleuze. Exu, Ogum e Oxóssi estão mais do lado do acontecimento. Pelo menos a guerra e a caça exigem decisões rápidas, preparações atentas, conhecimentos finos de como as coisas são tecidas entre elas, intuições das necessidades vivenciadas pelo inimigo ou pela presa.
Félix Guattari parece ser filho de Oiá, orixá ligada aos raios e tempestades, à água e à floresta.4 Mais praticante de guerrilhas que de guerras, por ser apaixonada, caracterizada por deslocamentos bruscos. Oiá está do lado do evento, pelo afeto que puxa um fio e corre, e queima: ela é a superfície do vento no evento. Félix de Oiá, dos devires imprevisíveis, das virtualidades assumidas desde que anunciadas, da velocidade quase absoluta no pensamento.
E nas importantes colocações de Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, sobre o devir-bruxo, sobre as ligações por conexão entre elementos heterogêneos, aparece a intensidade-Ossãe, orixá patrono de toda a vegetação, das folhas e seus derivados mágicos e medicinais. Oiá, Ossãe e uma parte de Exu estão mais do lado do evento. O que em Exu é o "estilo", a geração do que é totalmente individual, singular. O terço incluído em todo evento, a relação que sempre pode ser prolongada em várias direções. No indivíduo singular, o estilo aparece como uma vibração do ar quando anda, uma diferença sutil no ambiente quando está presente, mesmo calado e invisível. Evento-Exu, que os cristãos assimilaram ao Diabo!!!
Reparemos que se trata bem de uma dupla-captura: não estamos propondo apenas uma experimentação (não uma interpretação – "Sobretudo não interpretem mas experimentem!", disse Deleuze) da filosofia de Deleuze-Guattari pelo candomblé; experimentamos, também, o candomblé por meio da máquina elementar acontecimento/evento, colocando Ogum e Oxóssi de um lado, Oiá e Ossãe de outro, Exu entre os dois.
Em Ossãe, todavia, quero dizer, no devir-bruxo, os nossos filósofos viram só a bruxaria, mas sabe-se, no candomblé, que se deve cuidar do mistério nos devires, proposta inconciliável com o projeto da ciência ocidental. Uma preparação invisível é necessária para que nasçam intensidades novas. Esta outra concepção da ciência, diferente, não foi "vista" por Deleuze e Guattari nos seus livros. Oxóssi não a revelou. Nesta, o segredo, a química que permite obter os sumos potentes, a paciência, a imaginação atenta, o uso cauteloso do tempo são necessários. As máquinas de guerra não servem de nada. A máquina-maga ("maga", mulher do mago, como diria uma criança), na ciência, não somente conecta elementos heterogêneos, como nossos filósofos apontaram; ela é uma qualidade de uso do tempo. A ciência-Ossãe é uma "ciência sensível", como dizem as pesquisadoras em enfermagem que tomaram por modelo epistemológico o cuidar na sua verdade prática. Conhecendo pelos seus sentidos, sua emoção, sua intuição e sua razão, a pesquisadora afirma o seu direito de conhecer com todo seu corpo, inclusive nos territórios da ciência "nobre". O evento, aí, é um "concreto", no sentido dos perfumadores, isto é, o produto de base, o concentrado oriundo das flores: o mais evanescente e o mais sensível e sensitivo narra toda uma história, exprime um dia, uma terra, um canto de sol e sombra. Lembro a cultura da minha terra, cultura de vinho, queijo e perfume. Os franceses são bruxos (Serres 1985 expôs com muita leveza alguns segredos que fazem com que os sentidos pensem: este filho de Hermes-Exu, grande navegador do claro-escuro, foi iniciado pelos donos da floresta).
Misteriosa, a ciência-Tempo. Do lado do evento, o orixá-Tempo,5 a intensidade-Tempo, patrono da nação Angola, que liga os ancestrais que moram na terra com os vivos, nós humanos, morando no ar. De paciência infinita ou muito brusco, terrível guardião do esperado e do inesperado, do previsível e do imprevisível, o Tempo. Aí, o evento é feito de fluxos que atravessam os ancestrais e o presente, os mortos e os vivos. Algo fica fora da compreensão, no mistério. O evento é momento que afasta o que atrapalha a obra, ele é como cavado, tirando o inútil. Daí fica uma linha, como na escrita dos haïkaï japoneses. Um método, não uma organização. O tempo faz a máquina, dá a forma, não a substância. O tempo "maquina" o evento. Cuidado: não se trata de passado, nem de instituído. Não são necessários a dimensão temporal na poesia, os tempos do verbo, as preposições, os advérbios, para o tempo-evento: a noite, um barco, o fremir de um pássaro. Eis o charme do tempo que não acontece, mas "eventa". Vapores de uma emoção-intuição: o segredo do Tempo, diferente do segredo de Ossãe, das folhas. Com o tempo encontramos a raiz do evento, a base que passou, transpassou a prova da duração. Por exemplo, apesar das suas irredutíveis diferenças, há algo que "faz evento", eternamente, em Weber, em Marx, na Escola de Chicago. Uma base que questiona sem cessar os pesquisadores. O evento-tempo abre o que estava arrebatado. Michel Serres encontrou uma expressão interessante desse fenômeno: o tempo está como uma folha dobrada e machucada. Assim, um lugar que acreditamos ser muito distante segundo a concepção ingênua do tempo linear, como por exemplo o Pórtico dos próprios Estóicos que inspiraram estas páginas, está ao nosso lado. Aqui está o Aiôn, o tempo infinito, no qual caminhamos sempre pelo meio, tão diferente do Cronos acostumado. Deleuze apontou alguns aspectos do Aiôn estóico, mas ficou distante daquele tempo africano que liga os mortos com os vivos, daquele tempo-árvore-Iroko, cujas raízes mergulham no mundo dos antepassados e cuja folhagem abraça os vivos. Na sua obra, Nietzsche foi o pensador do evento-tempo, marcando tanto o aspecto cortante e arriscado do orixá-Tempo como as lentas maturações que, da Aurora até o Crepúsculo, lhe permitiram mastigar e destacar o essencial.
Dobrando a espiritualidade na ciência
Qual a significação dessas considerações? É que fazer-ciência, aprender, logo ensinar, cuidar… todas as reações que temos com o saber são plurais: existem muitas entradas no conhecimento. Essas entradas são variadas, às vezes sendo classificadas pela academia em termos de "populares", "práticas", "teóricas". O fazer-ciência é um caminhar: o método (o caminho) cria o tipo de ciência que se possuirá. Não há um método, único, que seja científico. A ciência-Tempo é um tipo de ciência que Nietzsche opôs, na sua época, como "intempestivo", "não-atual", à ciência instituída, pois incompreensível pelos cientistas "normais". Hoje, as enfermeiras lutam pela dignidade epistemológica da ciência-Ossãe na academia. Mas não se trata somente de caminho, método. A ciência é, também, assunto de energias. Todos os cientistas não mexem com os mesmos tipos de energias; energias diferentes são envolvidas em práticas cognitivas diferentes. Por isso se diz que o caminho tomado participa do conhecimento produzido. A maneira de entrar no saber define um tipo de saber específico.
Agora devem-se discutir as idéias de universalidade e comunidade, pois a tradição africana é comunitária. Com efeito, o conhecimento não se transmite fora da vivência do iniciado na comunidade; as abstrações construídas (para falar aquela estranha língua acadêmica) são sempre relacionadas a um contexto enunciativo único, por exemplo o mito, com seus arquétipos, é uma narrativa que toma seu sentido somente em uma situação de diálogo, racional, emocional, sensível e intuitivo, com o ouvinte, no momento presente. Mas o mesmo mito está virtualmente grávido de sentidos múltiplos e plurais. Contrariamente à tradição racionalista ocidental, o nagô ou o banto afirma que o sujeito e o objeto, na relação de saber, são sempre dobrados um dentro do outro – o que não impede o surgimento de abstrações, de textos cujo sentido está aberto a significações diferentes. Daí, uma ligação original entre o comunitário e o universal: um outro nunca fará exatamente a mesma experiência ao criar as mesmas condições, uma vez que reencontrar as mesmas condições é impossível. Mexe-se com singularidades, conforme as tendências da ciência atual apontadas por Deleuze na primeira citação deste artigo. As abstrações – que são mais o resultado de uma operação de fusão que de construção (muito sólida, dura, a construção, que tem pouco a ver com as energias sutis envolvidas no processo de aprendizagem iniciático) – são aquelas noções universais que Spinoza, na Ética, II, Prop. XL, Escólio 1, definia assim:
Tantas imagens – imagens de homens por exemplo – se formam ao mesmo tempo no corpo humano, que ultrapassam a força de imaginar, não completamente de verdade, mas a tal ponto, todavia, que o espírito não possa imaginar nem as pequenas diferenças que existem entre cada um destes homens (tais como a cor, o tamanho etc., de cada um), nem o seu número determinado, e que imagine distintamente apenas aquilo em que todos são convenientes, enquanto o corpo está afetado por eles; pois é por isso que o corpo foi mais afetado, uma vez que foi por cada homem em particular; e isso, o espírito o exprime pelo nome de homem e o afirma de uma infinidade de seres particulares; pois, como já dissemos, ele não pode imaginar o número determinado dos seres particulares.
Mas, diferentemente do sábio da tradição ocidental que esqueceu as pequenas diferenças abandonadas no processo de abstração, o sábio nagô ou banto nunca esquece as singularidades que a língua, sem graça, traduz e trai através das noções universais. Ser filho de Xangô6 é ser ligado aos mitos de Xangô. Mas atuando esses mitos de modo, cada vez, único. E de maneira ainda muito especial, uma vez que existem 12 Xangôs diferentes. Isso, por falarmos em relação à singularidade comunitária, que cria confluências rumo ao universal que nunca esquecem suas origens sensíveis no múltiplo, no pipocado do existir. Era como o avesso das coisas, o estar afetado que os nomes sempre escondem e, aos poucos, esquecem. Mais direto, o lado que olha para nós, poder-se-ia receber a seguinte formulação: as várias entradas no conhecimento – e os múltiplos tipos de conhecimento criados por essas entradas – são, epistemicamente, isto é, consideradas em relação às características daquele que conhece, determinadas pelo campo de energias chamadas de "orixás". Pouparemos aos leitores uma relação de todos os orixás e do tipo de ciência que cada um providencia, para nos concentrarmos sobre uma questão difícil: podem-se transferir as características epistêmicas para epistemológicas? Isto é: o fato de que um filho de Xangô (Spinoza, provavelmente) não faz ciência como um filho do Tempo (Nietzsche), apesar dos numerosos pontos de encontro possíveis no conteúdo, significa, também, que as ciências são diferentes? Ou se trata da mesma ciência, considerada a partir de olhares humanos, filosóficos e até psicológicos, diferentes? Metaforicamente falamos de ciência-Tempo, de ciência-Ossãe etc. Ou será a metáfora o desvelamento da verdade? Responder a esta questão supera as nossas forças atuais. Indicamo-la, a fim de abrir o espírito dos cientistas sociais: "O que vocês estão fazendo?" "Com qual energia vocês agem, imaginam e pensam, ao escrever o seu livro ou artigo para uma revista especializada?"
Na área das ciências do ser humano e da sociedade, pretendemos experimentar a idéia heurística (hipótese impossível de ser comprovada mas orientadora e necessária para produzir o conhecimento) de que há uma policientificidade, um policientismo, como se fala de politeísmo. Isso, pelo menos por razões éticas: enfraquecer o orgulho dos cientistas, ao afirmar: "O seu Deus, a sua Ciência, a sua Sociologia, com tantos maiúsculos, é somente uma ciência entre as sociologias (ou psicologias etc.) possíveis!" A ciência, na sua unidade universal, no caso a sociologia, seria o jogo de diferenças e de semelhanças entre a sociologia-Xangô, a sociologia-Ossãe, a sociologia-Tempo etc., etc. Assim resgatamos a ligação entre sabor, saber e sabedoria (sabor: a diversidade da experiência, antes que esta seja nomeada, recoberta por noções universais; saber: produto de um conjunto de operações, nas quais os diferentes processos de abstração desempenham um papel central; sabedoria: união singular, em um ser humano, de sabores e saberes, que permite relacioná-lo com a Natureza inteira). O equilíbrio entre as energias naturais-espirituais chamadas de orixás, que a tradição africana preservou durante séculos, até em terra brasileira, permitiu vencer na prova sofrida por todas as coisas sob o sol: o tempo. Isso significa que a referida tradição mostrou o seu poder integrador da variedade humana. Daí mostramos o interesse heurístico de referir-se ao candomblé na nossa elaboração da ciência da sociedade e do ser humano. Os leitores que conhecem os mitos de qualquer tradição, grega ou outra, sabem que o olhar-ouvir-sentir que eles proporcionam é mais abrangente que o mero olhar científico. O afastamento da consciência da humanidade dos seus mitos, em nome da ciência, não foi uma boa coisa, pois, queiramos ou não, esses mitos agem. Assim age o mito da ruptura radical, que cada geração de cientistas reproduz em uma área do conhecimento ou outra, acreditando a ruptura ser um dado histórico "objetivo", empiricamente verificável, quando é uma das grandes figuras míticas do nascimento. A atitude reducionista que privilegia apenas um mito, como a psicanálise freudiana, gera do seu lado uma cientificidade parcial, mutilada. Por isso preferimos nos referir a um universo mítico completo, e convocar uma grande variedade de mitos para nos conscientizar e, logo, distanciar da implicação do discurso científico nas narrativas arquetípicas da humanidade.
O mito dentro do qual nossa ciência social pensa fica invisível, uma vez que estamos dentro dele; ele é nosso mundo, o ar que respiramos. Por exemplo, um grande cientista, o autor da Crítica da economia política, que estabeleceu as leis do valor e explicou a formação da mais-valia, precisava de mitos implícitos relacionados à energética e ao trabalho do ferro para fazer do "tempo de trabalho médio socialmente necessário" a medida de todo valor, inclusive do valor da força de trabalho. Vivia na época da termodinâmica, da máquina a vapor: sua ciência, até nos seus aspectos considerados como universais, estava implicada, dobrada nos mitos da idade do ferro. Isso não impede os problemas locais desenvolvidos pelos cientistas de estarem freqüentemente longe dos arquétipos míticos e suscetíveis, às vezes, de falsificação. Mas a orientação global da teoria é, pelo menos nas ciências humanas e sociais, baseada em seres lógicos ambíguos, intermediários entre a imagem e o conceito. Vemos assim que a ligação entre racionalidade e imaginário é uma ligação forte, característica do pensamento humano no seu aspecto criador, a imaginação. Mais uma vez citaremos Michel Serres (1994, pp. 229-230):
Existe mito na ciência, e ciência nos mitos. É ainda preciso narrar esta imensa história ou lenda, não fragmentada […]. A dicotomia está nas cabeças. E nas instituições; nos jornais; no intercâmbio convencional; nas grandes correntes de pensamento, como se diz. Em todos os lugares. Salvo nas ciências inventivas, ativas, e nas histórias de velhinhas. Salvo na ponta extrema, fina e rápida, e na base mais lenta. Salvo no cume da montanha onde se chega após esforços extremos e toda uma vida de treinamento, e entre os idosos, nas ocas do vale. Salvo em ponta e na base. No meio, o intercâmbio usual está cercado de nuvens, nevoeiros e vapores.
No lado das ciências experimentais, lembramos que o físico Niels Bohr (1995), cuja obra na área da física atômica marcou o século XX, definia o fenômeno como constituído tanto do objeto que estamos experimentando como do dispositivo experimental que permite a observação do mesmo. Já que o aparelho de medida interfere sobre o objeto a ser medido, ele pertence ao fenômeno. Isso é a grande revolução epistemológica da física quântica: um fenômeno não pressupõe somente um objeto ligado às nossas capacidades de perceber e raciocinar (o que seria um "fenômeno" no sentido de Kant), mas é um fenômeno enquanto estiver ligado ao dispositivo experimental, ao dispositivo que permite o conhecimento.
Isso é umas das coisas mais importantes que Bohr trouxe à reflexão epistemológica. É muito estranho que as ciências humanas tenham tantas dificuldades para reconhecer o que a física reconheceu há já mais de 50 anos, o fato de que cada abordagem teórica e cada dispositivo de olhar, da observação, modificam o objeto de estudo... que nunca estudamos um objeto neutro, mas sempre um objeto implicado, caracterizado pela teoria e pelo dispositivo que permite vê-lo, observá-lo, conhecê-lo. A nossa pergunta, logo, tem esta forma: Será que os mitos relacionados com as energias básicas da natureza (chamadas, na cultura afro-brasileira, de orixás) são implicados, queiramos ou não, nos fenômenos que pretendemos observar?
Uma resposta negativa conduziria de novo à visão tradicional da ciência, caracterizada pela sua ruptura epistemológica radical com o mundo mítico. Mas neste caso deve-se considerar com muita atenção os críticos radicais das ciências sociais e humanas que afirmam, como Popper (1985), que estas não são ciências, mas somente narrações, discursos de verdade e não discursos verdadeiros: como poderíamos criar um discurso sobre as narrativas sociais que escaparia às implicações características dessas narrativas?
Uma resposta afirmativa implicaria que assumíssemos as nossas implicações como partes constituintes do objeto estudado. Daí, uma dobra epistemológica – e não apenas epistêmica – da espiritualidade (no caso, africana) na ciência, o que é o limite que podemos atingir na alteração das posições instituídas, dicotômicas entre mito e ciência. Pode-se sempre reduzir a espiritualidade à ideologia e, logo, as implicações espirituais às ideológicas. O problema não desaparece: com efeito, a ideologia assim entendida contém um "núcleo de verdade" (conforme, por exemplo, o "bom senso" de Gramsci 1985), aspectos universais presos nas contradições históricas etc. que, por seu lado, a referência mítica assume sob o nome de arquétipos. No seu estudo famoso sobre a "imaginação científica", Gerald Holton (1981) parece ter encontrado alguns arquétipos imaginários que o pensamento científico desenvolve mais ou menos conscientemente (por exemplo, continuidade x descontinuidade). Queremos encontrar as narrativas (os mitos) pelas quais esses arquétipos receberam sua significação, o que permitirá, talvez, distinguir vários tipos de continuidade e descontinuidade. A nossa crença é que a velha humanidade, na sua experiência global, "sabe" aquelas coisas claro-escuras que desconhece a ciência normal, apesar de usá-las. É a crença inversa da de Bachelard (1972), que evidenciou a qualidade diferente (e superior) do saber dos cientistas que, heroicamente, se afastaram do claro-escuro do conhecimento ordinário, e criaram assim a juventude perpétua dos que souberam dizer "não" ao saber instituído, legitimado pelas melhores tradições. Quem enxerga bem, quando se trata das ciências da sociedade e do ser humano?
Com as velhinhas de Michel Serres escolhemos estar aqui, no limiar da loucura, do impensável, do inefável: contemplando a morte de um modelo, clivado, do pensamento. A morte do sol, da luz apoloniana, o nascer do conhecimento escuro, confuso, preto, não óbvio, que talvez será um dos paradigmas do século XXI.
A ciência pode ter o status paradoxal de uma disciplina fundada sobre mitos, que seja capaz de produzir objetos não-míticos
Assim pode a ciência-Ogum (a ciência segundo Deleuze-Guattari) produzir objetos não-míticos, isto é, que sejam traduzíveis na língua da ciência-Ossãe (a ciência procurada, por exemplo, pelas enfermeiras a partir da prática do cuidar) etc. A invenção científica, segundo a primeira, necessita da presença de uma máquina de guerra que captura e altera tanto os saberes acadêmicos como as práticas cotidianas do cuidar pelas profissionais; de acordo com a segunda forma de ciência, para inventar são necessários a cautela, o rigor, a precisão, a intuição e a sensibilidade daquelas que desenvolvem uma relação de empatiacom o paciente. Duas episteme, dois problemas, dois tipos de "objetos". Mas sempre a tradução é possível. É só "medir" o custo em traição da tradução – salvo ao considerarmos, fiéis à experiência daquele que está entre as duas línguas, isto é, do tradutor, quetraduzir, em lugar de perder informação, traz mais sentido, mais saber, mais vida ao texto original. Neste caso, "mediremos" o ganho em traição! – apostando numa filosofia positiva e alegre da diferença, da multiplicidade, da proliferação, contra a tristeza das filosofias da pureza, da autenticidade e da identidade.
As candangas, a nomeação e a alteração de Graziela-Adélia, Gradziélia a velada, a escondida, Graça a claro-escura filha que assobia na trovoada e no nevoeiro
No fascinante livro Bailarino-Pesquisador-Intérprete: Processo de formação, Graziela Rodrigues (1997) descreve o caminho e as energias encontradas na formação (ou talvez: no nascimento) do seu corpo sábio, pensador, de bailarina:
1) Freqüentou as mulheres candangas de Brasília, compartilhando incógnita, com os sentidos abertos e sem interpretar o que sentia, os ônibus, e em seguida uma agência de empregos domésticos. Ela comenta (idem, p. 18): "Diante da vida do povo sofrido, a gente não fala, só sabe calar: esquece as idéias do povo sabido e fica humilde, começa a pensar…"
2) Durante esses três meses de convivência diária, abriu-se um novo espaço. Por exemplo, uma história de grande desilusão contada por uma candanga era concluída por frases tais como: "Mas eu tenho a força da Pomba-Gira, ou a noitinha minha sereia penetra a fresta de meu barraco, cheia de luz trazendo um recado" (idem, p. 19).
3) De volta ao espaço profissional da sala de dança, a prática do diretor era trabalhar com base nos diários de campo:
No início o corpo não respondia, mas aos poucos foram emergindo registros emocionais, somatório do universo vivenciado na pesquisa de campo com a minha própria memória afetiva. O corpo foi assumindo várias sensações e configurações decorrentes das imagens de lugares vividos em campo e das imagens "desconhecidas" situadas em mim mesma. Estas imagens conjugadas apresentavam uma nova configuração de paisagem – espaço onde se desenvolvem experiências de vida, que se instaurava no corpo. (Ibid, p. 19)
4) Apresentou-se o nome da personagem, síntese de todas as mulheres da pesquisa, das mulheres candangas. Chamava-se Graça. Daí o nascimento do espetáculo: "Graça bailarina de Jesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil".
5) Graziela Rodrigues conclui teoricamente:
Vivi na própria pele umas tantas "mulheres obscuras", bem ditas por Cora Coralina, provindas de universos urbanos, suburbanos e rurais do Brasil. Elas me ensinaram a rebojar. O rebojo é a parte do rio onde as águas se agitam, rodando, pela presença de uma parte funda e afunilada de pedras. O perigo é denunciado pela efervescência das águas, cuja agitação atinge a superfície. Quando algum objeto ou pessoa cai no rebojo, vem à tona, rodando, antes de desaparecer. Rebojar é exatamente sair do fundo do rebojo até a veia d'água. (Núbia Gomes e Edimilson Pereira, 1988: Negras raízes mineiras: os Arturos) (Ibid., p. 20)
Não se trata da mera procura narcisista de si: é o próprio "corpo brasileiro", constituído na margem da sociedade, em festas e rituais populares (no caso, particularmente a umbanda), que é procurado. Sendo uma personagem-chave, encontrada no processo de pesquisa, uma Pomba-Gira chamada de Maceió, "Exu mensageira, ponte entre Europa e Recife, com desvio por Angola. Pomba-Gira, filha da feiticeira ibérica tradicional, revista pelo Portugal escravista e confirmada pela Colônia, onde tornou a cruzar mandingueiros e ciganos" (ibid., p. 29), é a constituição do povo brasileiro, notadamente através da escravidão e do confronto/troca entre culturas, tais como ela foi internalizada e silenciada dentro do corpo, que é interrogada na experiência singular de pesquisa de Graziela Rodrigues.
Os resultados obtidos, relacionados aos bailarinos que vivenciaram o Processo, deram-se principalmente quanto à descoberta de seu potencial e de uma autonomia quanto a sua condução. A consciência de seus preconceitos, o questionamento de valores, a aceitação de seus conflitos e a identificação de que o modelo encontra-se dentro deles produziram um sentimento por eles traduzido como de "estar com o corpo vivo". (ibid., p. 24)
Trabalho de empatia com as mulheres reais, que sofrem e resistem, descoberta dos corpos de mulheres conservados vivos nas culturas de resistência, colocação em crise do seu próprio corpo construído pela academia, expressão de um modelo espiritual de corpo popular, entre outros possíveis (virtuais)… para mim, a obra de Graziela Rodrigues situa-se na filosofia da sociopoética, teoria da pesquisa e do ensino-aprendizagem que caracterizamos a partir das cinco afirmativas seguintes, tomadas simultaneamente, que permitem transformar poeticamente para conhecer:
• pesquisar com todo o corpo, isto é, razão, emoção, intuição e sensação;
• não separar a arte da racionalidade na construção do conhecimento;
• relacionar-se aos saberes das culturas dominadas e de resistência;
• não separar ciência e espiritualidade;
• fazer com que os participantes da pesquisa se tornem co-pesquisadores.
Nossa proposta desenvolve-se no sentido de instituir um diálogo permanente, dentro da ciência, entre as culturas sobre o que é a ciência (ver Gauthier e Santos 1996). Daí idealizamos várias pesquisas inter e transculturais e criamos os encontros de Pesquisa Artística e Transcultural em Educação (Partranse), associando notadamente povos indígenas, pessoas do candomblé, movimentos sociais e movimentos de mulheres na busca de uma cientificidade co-produzida, e não imposta pela civilização colonizadora.
Na experiência de Graziela Rodrigues vejo, obviamente, uma ciência da transformação (pela crise e sua superação), graças à ação de um terço incluído, aos poucos desvelado no seu próprio corpo: Exu em sua forma feminina de Pomba-Gira. Vejo também um método e uma energética que se podem chamar de ciência-Oxalá.7 Em suas duas formas, Oxalá é uma máquina de alteração, pois ele é tão obstinado nas suas intenções que se torna capaz de descumprir as regras que ele mesmo se deu, depois de ter consultado Ifá, o destino. Durante muito tempo procuramos, na sociopoética, uma teoria da alteração do pesquisador, que completasse a teoria da implicação dos socioanalistas. Mas não queríamos uma teoria hegeliana, dialética de tipo: tese-antítese-síntese, que mantivesse a identidade sob a figura da alteridade. Queríamos uma teoria da alteração mesmo. Aí descobrimos a máquina de alteração Oxalá, muito diferente da máquina de guerra nômadeOgum (Deleuze-Guattari). Ela cria uma rede de intensidades que caracteriza um indivíduo, ou melhor, aqui, o rizoma individual Candangas-Graça-Graziela-Diretor-Pomba-Gira. Esse rizoma exprime a confusão – no sentido de Michel Serres – dos mundos que atravessam a pesquisadora. Lembramos que, como criador, Oxalá velho, lento, que anda bem devagar quando se manifesta, gerou Exu-Iangui, o princípio do movimento sem o qual tudo estaria paralisado. Alteração pelo esquecimento, pela sapiência empática, pela oposição a si próprio, mas não existe, nesta poética da formação, nenhuma síntese, a não ser a ampliação do que a pesquisadora-bailarina Graziela chamava de "configurações da paisagem" – simbolizadas por um nome de estranha beleza: Graça bailarina de Jesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil – nas duas direções do Aiôn, nos mundos virtuais da história não escrita (salvo nos corpos das dominadas), das trilhas desconhecidas em que passado e futuro trocam suas apelações. Daí, a Graça, puro evento.
Conclusão
Tomamos por referência experiências vividas em culturas tipicamente brasileiras, tais como o candomblé e a umbanda, a fim de participar da descolonização dos espíritos (e dos corpos!). Podíamos, com o mesmo rigor, referir-nos à mitologia grega ou taoísta, ou, sempre dentro de uma perspectiva de descolonização, a uma mitologia indígena. Nos parece que o problema da crise do paradigma nas ciências da sociedade e do ser humano poderá ser resolvido somente ao consentirmos uma radical revisão das relações entre ciência e mito, entre ciência e arte, entre ciência e culturas de resistência. Por quê? Porque pensamos que as ciências da sociedade e do ser humano não se enraizaram de maneira satisfatória, ao esquecerem que os grupos humanos são criadores de significações e sentidos. A ciência deve reconhecer que ela é, também, uma criação de significações entre outras, que se articula com essas outras, e não pode isolar-se numa torre de marfim. Assim como existem "jogos de linguagem" (Wittgenstein 1953), existem "jogos de significações", com uma problemática complexa de traduções, fusões, ironias, simulações etc. Pesquisar, entender, conhecer, assim, é brincar no jogo das significações virtuais. Pouco importa que as entidades das religiões afro-brasileiras sejam verdadeiras ou não passem de seres ilusórios. O que é significante é que elas pertencem a um sistema organizador da experiência potente (pois muito diferenciado), suscetível de experimentação e negociação. Daí, a nossa ciência não pode fazer como se este chão de significações não existisse e se construir através da assim chamada "pureza" de rupturas epistemológicas que acreditariam se livrar definitivamente desse chão mítico. Não é assim: a posição da pesquisa científica é de interação polifônica com as significações já construídas pela humanidade – o que não impede momentos de franca ruptura, mas nunca "puras". Como apontou Michel Serres em Atlas, podemos estudar essas interações polifônicas COM (problema da comunicação e do contrato), ATRAVÉS DE (problema da tradução), ENTRE(problema das interferências), POR (problema das passagens), AO LADO DE (problema da parasitagem) e FORA (problema do distanciamento). Todas essas posições relativas entre a ciência e os outros sistemas de significações devem ser meticulosamente exploradas, assim como começamos. Às vezes, nossa contribuição foi orgulhosa. Mas foi somente a expressão momentânea do nosso "rebojar". Indicamos um problema, experimentamos uma trilha até seu limite, para tentar resolvê-lo. Se fomos além do razoável, até a vertigem, foi o preço do risco. Este texto já está chamando respostas.
Notas
1. Obviamente, o devir-mulher, tanto difícil para a mulher como para o homem, não impõe nenhuma cirurgia! É o devir-político de quem pensa a mulher fora da imposição criada pelo gênero dominante de escolher entre o homem e a mulher. Como apontou Garfinkel (1967), Agnes é muito conservadora: ela quer consertar para conservar, nela, o gênero instituído "mulher". Ela não inventa uma linha de fuga nova: ela quer um território bem conhecido, que a natureza não soube lhe dar. A linha de fuga não é Agnes: ela existe entre Agnes e Garfinkel. É a máquina de guerra Agnes Garfinkel, nova singularidade, nova individualidade, que é o analisador da produção social das categorias de gênero.
2. Elogiando o conhecimento claro-escuro, Michel Serres, que se diz profundamente ligado a Hermes, o Deus mensageiro, merece uma menção especial. Ele enxergou alguns mistérios na escuridão da lama. Meditemos, logo, a seguinte citação, de profunda sabedoria: "Nos livros Rome e Státuas é muitas vezes elogiado o gesto latim de enterrar, encobrir, esconder, colocar na sombra para conservar, opondo-o ao gesto grego de colocar na luz. É pronunciado o elogio mesmo da implicação, do dobramento da massa pelo padeiro e pela padaria, mais que da explicação: aí se encaram dois tipos de conhecimentos, cujo segundo só praticamos e estimamos […] Ora, tirar da escuridão é muitas vezes como destruir, e colocar na sombra como proteger. Nunca calculamos o preço dos nossos métodos, os acreditando gratuitos. Tudo se paga: até a clareza, pela escuridão ou destruição às vezes. Dever-se-ia inventar uma teoria do conhecimento escura, confusa, preta, não óbvia, uma teoria do conhecimento adélia – este adjetivo bonito, de sonoridades femininas, significa isso: o que se esconde e não se mostra. Muito antes que a ilha apoliniana de Délos se nomeasse assim, ela se chamava de Adelos, a velada; se você já tentou abordá-la, você sabe sem dúvida que, muito freqüentemente, ela se esconde na trovoada e no nevoeiro. A sombra acompanha a clareza como, em outros lugares, a antimatéria avizinha a matéria" (Serres 1994, pp. 214-215).
3. Orixá patrono do movimento, da expansão, do desenvolvimento. Diz a tradição nagô que cada ser e cada coisa tem o seu Exu particular; sem ele, todo o sistema de seres e coisas estaria paralisado. Exu constitui o princípio da existência individualizada. É o principal responsável pela integração entre orun e aiê, céu e terra, sendo considerado o mensageiro dos demais orixás. (In: Sodré e Lima 1996). Exu tem o poder de desfazer o que ele fez, logo, desmembrar o indivíduo.
4. Sodré e Lima continuam: "Segundo alguns mitos, transforma-se em touro. Segundo outros, em borboleta. Certa qualidade de Oiá é patrona dos espíritos ancestrais. Também conhecida como Iansã."
5. Orixá padrão dos candomblés da nação Angola. Materializado nos terreiros por uma árvore sagrada que se enraíza no mundo dos ancestrais e desenvolve sua folhagem no mundo dos vivos, o orixá-Tempo se manifesta através de formas muito firmes, afirmativas que cortam, mudanças inesperadas, e também por regulações visíveis e invisíveis, esperas sem limites…
6. Orixá do trovão, ancestral divinizado da dinastia dos Alafin, reis da cidade iorubá de Oió. É associado ao elemento fogo (Sodré e Lima, op. cit.). Zaze pelos Bantos.
7. Orixá considerado o pai da criação, relacionado aos elementos água e ar e à cor branca. Simboliza o princípio masculino (Sodré e Lima, op. cit.). Oxalá se realiza em duas formas: Oxaguian, o jovem guerreiro, e Oxalufan, o velho sábio que traz paz, dedicação ao próximo e harmonia.
What is searching? Between Deleuze-Guattari and Candomblé, thinking about myth, science, art and cultures of resistance
ABSTRACT: Actual science is a science of events and occurrences. After Deleuze, studying the difference between event and occurrence in the stoician philosophy, the author characterises several ways to "make science": the double capture which is, in a transcultural vision, related to the god Ogum in the candomblé; the dark maturation, related to the goddess Ossãe etc. After Spinoza, the question of the local and the universal in the construction of knowledges is examined; after Michel Serres, the problem of articulation between myth and science. Graziela Rodrigues' research, `Bailarino-pesquisador-intérprete: Processo de formação' is an example of an innovated, transcultural and social poetic approach. There's a question left to conclude this article: does the end of colonisation of spirits (and bodies) pass though the creation of a transculturalepisteme?
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* Doutor em Ciências da Educação; Pesquisador da Universidade de Paris III;(Equipe de Pesquisa Pós-Doutoral ESCOL Education, Socialisation et Collectivités Locales); Pesquisador do Desenvolvimento Científico Regional CNPq / Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Email: socpoet@snv.com.br